sexta-feira, 9 de abril de 2021

A barquilha e a linha

Até então, durante toda a longa viagem do predestinado Pequod, a barquilha e a linha muito raramente haviam sido usadas. Devido a uma destemida confiança em outros meios de determinar a posição de uma embarcação, alguns navios mercantes e muitos baleeiros, especialmente quando estão em cruzeiro, negligenciam o içar da barquilha por completo; embora, ao mesmo tempo, e mais por formalidade do que por outra coisa, registrem regularmente sobre a lousa tradicional a rota seguida pelo navio, assim como a suposta progressão horária. Assim sucedera com o Pequod. O carretel de madeira e a barquilha angular presa a ele estavam havia muito pendurados, sem terem sequer sido tocados, bem abaixo dos paveses da popa. Chuvas e surriada molharam-na; sol e vento empenaram-na; todos os elementos concorreram para estragar uma coisa tão ociosamente dependurada. Mas, desatento a tudo isso, o mau humor apoderou-se de Ahab, enquanto seu olhar caía por acaso sobre o carretel, não muitas horas depois da cena do ímã, e ele se lembrava do quadrante que já não existia, rememorando seu juramento frenético a respeito da barquilha e da linha. O navio arfava; e à popa as ondas rolavam em tumulto.
Ó, da frente! Içai a barquilha!”
Dois marinheiros se apresentaram. O dourado taitiano e o grisalho de Man. “Segura o carretel, um de vós, e eu içarei.”
Encaminharam-se para o extremo da popa, a barlavento, onde o convés, pela força oblíqua do vento, estava agora quase imerso no mar cremoso que corria ao lado.
O homem de Man pegou o carretel e segurou-o no alto, pegando nas extremidades do fuso, em torno do qual girava a bobina da linha, e assim se manteve, com a barquilha angular pendurada, até que Ahab se aproximou.
Ahab estava de pé diante dele e já desenrolava cerca de trinta ou quarenta voltas para fazer um rolo preliminar e atirá-lo ao mar, quando o velho de Man, que olhava atento tanto para ele como para a linha, encontrou coragem para falar.
Senhor, eu não confio nela; esta linha parece-me muito gasta, tanto calor e umidade estragaram-na.”
Há-de segurar, respeitável senhor. Tanto calor e umidade estragaram-te? Pareces segurar bem. Ou, talvez mais verdadeiro, a vida é que te segura; não tu a ela.”
Seguro a bobina, senhor. Mas como o meu capitão quiser. Co’estes cabelos grisalhos não vale a pena discutir, especialmente c’um superior que nunca admite nada.”
Que é isso? Eis um professor remendado do Colégio de granito da Rainha Natureza; mas parece-me subserviente demais. Onde nasceste?”
Na pequena ilha rochosa de Man, senhor.”
Excelente! Descobriste o mundo assim?”
Não sei, senhor, mas nasci lá.”
Na ilha de Man, hein? Bem, de certo modo, é bom. Eis um homem de Man; um nascido em Man, na outrora independente Man, e agora desguarnecida de homens; e que foi sugada – por quê? Içai o carretel! O muro, a muralha defronta-se por fim com todas as cabeças inquiridoras. Para cima! Assim.”
A barquilha foi erguida. Os rolos soltos esticaram-se depressa em uma comprida linha que se arrastou à popa, e, instantaneamente, o carretel começou a rodopiar. Em resposta, subindo e descendo aos trancos pelo rolar das ondas, a resistência da tração da barquilha fez com que o velho do carretel cambaleasse de modo estranho.
Segura firme!”
Zás! A linha demasiado esticada partiu-se, formando uma longa grinalda; a barquilha de reboque desapareceu.
Eu quebro o quadrante, a trovoada desregula as agulhas e agora o insensato oceano parte a linha da barquilha. Mas Ahab tudo pode remediar. Puxa aqui, taitiano; enrola aqui, homem de Man. E olha, dize ao carpinteiro que faça outra barquilha e tu, conserta a linha. Cuidai disso.”
Lá vai ele agora; para ele nada aconteceu; mas para mim o eixo pareceu soltar-se do meio do mundo. Puxa aqui, puxa aqui, taitiano! Essas linhas desenrolam-se depressa e inteiras; mas voltam lentas e quebradas. Ah, Pip? Vem ajudar; ei, Pip!”
Pip? A quem chamas de Pip? Pip pulou do navio baleeiro. Pip desapareceu. Vamos ver se não o pescaste ali, pescador. Está difícil de puxar; acho que ele está segurando. Sacode-o, Tahiti! Sacode-o fora; não rebocamos covardes para cá. Oh! ali está o braço dele rompendo a água. Uma machadinha! Uma machadinha! Corta – não rebocamos covardes para cá. Capitão Ahab! Senhor, senhor! Eis Pip, tentando subir a bordo de novo.”
Cala-te, maluco”, gritou o homem de Man, pegando-o pelo braço. “Cai fora do tombadilho!”
O maior idiota sempre ralha com o menor”, murmurou Ahab, adiantando-se. “Tirai as mãos de cima dessa santidade! Onde disseste que Pip está, rapaz?”
Ali à popa, senhor, à popa! Olha, olha!”
E quem és tu, rapaz? Não vejo meu reflexo nas pupilas vazias dos teus olhos. Oh, Deus! Que o homem deva ser um crivo para as almas imortais atravessarem! Quem és, rapaz?”
O sineiro, senhor; o pregoeiro do navio; ding, dong, ding! Pip! Pip! Pip! Recompensa por Pip! Cem libras de argila – cinco pés de altura – aparência de covarde – mais facilmente reconhecível por isso! Ding, dong, ding! Quem viu Pip, o covarde?”
Não deve haver corações acima da linha da neve. Oh, vós, céus congelados! Olhai aqui para baixo. Vós gerastes essa criança sem sorte e a abandonastes, vós, libertinos da criação. Aqui, rapaz; a cabine de Ahab doravante será a casa de Pip, enquanto Ahab viver. Tocas o meu centro mais íntimo, rapaz; estás preso a mim com as cordas feitas com as fibras do meu coração. Vem, vamos descer.”
Que é isto? Eis a pele de tubarão de veludo”, olhando atentamente para a mão de Ahab e apalpando-a. “Ah, bem, tivesse o pobre Pip tocado uma coisa tão boa como essa, talvez nunca tivesse se perdido! Isto me parece, senhor, um guarda-mancebos; algo a que as almas fracas podem se agarrar. Oh, senhor, que o velho Perth venha cá e rebite juntas essas duas mãos; a preta com a branca, pois eu não quero mais deixá-la.”
Ó, rapaz, nem eu te deixarei, a menos que vá te arrastar para horrores piores dos que estes aqui. Vem, pois, para a minha cabine. Olhai! Vós que acreditais nos deuses de toda a bondade e nos homens de toda maldade, olhai! Vede os deuses oniscientes esquecidos do homem que sofre; e o homem, embora idiota e sem saber o que faz, cheio das doçuras do amor e da gratidão. Vem! Sinto-me mais orgulhoso, levando-te pela tua mão negra, do que se segurasse a de um imperador!”
Lá se vão dois malucos agora”, murmurou o velho de Man.
Um demente pela força e outro pela fraqueza. Mas eis a ponta da linha partida – toda encharcada. Consertá-la, hein? Acho que seria melhor arrumar uma nova. Vou falar com o senhor Stubb a respeito.”

Herman Melville, in Moby Dick

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