sábado, 20 de março de 2021

Marilu

Ai, Marilu, aquele sorriso vermelho de batom, olhar lânguido, colar de pérolas, cabelo à la garçonne, seios opulentos, espremidos pra cima, querendo saltar pelo decote da blusa, mostrando o estreito vale de carne macia que levava aos picos do de-leite; bem disse o pensador francês que erótico é o pedacinho de carne que aparece no decote, porque não mostra mas sugere, no mundo das sugestões tudo é possível, era ver pra ter vontade de enfiar o dedo, não se sabe quantos homens sonharam entrar naquele vale espremido de delícias, os homens, os adolescentes, os velhos, todos ficavam doidos, pensavam indecências, viravam a cabeça quando ela passava, muito certa a expressão que diz “está com a cabeça virada”, mas ela era mulher honesta, casada com médico recém-mudado para a cidade. Mais imaginosos e práticos que os homens foram os adolescentes, que realizaram seus sonhos pelo poder da poesia. As metonímias, ah, as metonímias... Acontecia que dona Marilu e seu grave marido, em vez do café da tarde, pão de queijo, biscoito, bolo de fubá, chupavam laranjas, muitas laranjas, bom para os rins, diurético. Como não havia coleta de lixo, as chupas de laranja eram jogadas no terreno vazio ao lado, cheio de árvores, procedimento ecologicamente correto, sem que nem o doutor nem dona Marilu sua mulher pudessem imaginar a poesia que mora numa chupa de laranja; bem disse o Manoel de Barros que “tudo o que se pode medir com cuspe em distância é matéria para poesia”. Só que, no presente caso, não era a distância do cuspe, era a distância de outra coisa... Diferentes de todas as demais, que eram bagaço nojento, babujadas, aquelas chupas haviam sido chupadas por dona Marilu, tinham um pouco da sua boca, um pouco da sua saliva, não se via mas estava lá, e a meninada pulava o muro e ia fazer amor com as chupas de laranja chupadas por dona Marilu, sem pensar que entre elas poderia haver fios do bigode do marido dela, e as chupas de laranja, pela magia das metonímias, se transformavam em partes do corpo da dona Marilu, boca, seios, umbigo, o perfumado jardim secreto escondido entre as pernas, e já os jovens corpos eram possuídos pelo frenesi do amor e não se pode fazer conta de quantos milhões de espermatozoides foram ali heideggerianamente “lançados” neste mundo…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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