É preciso esclarecer desde já que, se
uma série de incidentes desagradáveis, arbitrariedades, atrocidades
mesmo, passaram a ocorrer com frequência a partir de sua gestão,
Juvenal e sua bondade estiveram sempre alheios. Alguns de seus
subordinados, delegados para o cumprimento de determinadas tarefas,
certamente exorbitaram de suas atribuições. Certos indivíduos
ficaram tão felizes com a nova situação que, no auge dessa
felicidade, cometeram alguns desmandos. Mas a História há de
isentar Juvenal, o Bom Boi, de toda e qualquer responsabilidade
quanto aos fatos que se seguem. Todos sabem que ele sempre e apenas
cumpriu ordens superiores. Ordens misteriosas, talvez divinas. E se
ordens sibilinas lhe roçavam as orelhas, ou lhe arrepiavam os pêlos,
ou lhe passavam entre as pernas, tais eram matérias que Juvenal
nunca poderia interceptar. É isso, Juvenal era incapaz de
interferência. Nem por outro motivo fora ele nomeado nosso supremo e
incontestável senhor.
Primeiro pronunciamento de Juvenal:
— Vamos dar nome aos bois.
Quatro agentes de confiança foram
destacados para o serviço: Klaus, Karim, Kamorra e Katazan. Era
evidente a euforia com que desceram ao pasto. Um desempenho inédito.
O cirurgião Klaus, encarregado de descornar as bestas, era o mais
eficiente. Além dos chifres, fazia questão de levar orelhas,
beiços, unhas, dente por dente, diz ele que para comemorar a data. A
quem protestasse amputava um pé. O artesão Karim, encarregado da
ferra, era o mais inspirado. Não satisfeito com a simples impressão
das iniciais da Fazenda (FM), tatuava as letras nas mais formidáveis
combinações, até que as carcaças ficassem lembrando um mosaico:
Kamorra e Katazan, incumbidos das
castrações, mal comportavam a saliva nas bocas. Colhendo ovos e
ovários, tilintando torquezas e torniquetes, quase que já
degustavam os guisados do churrasco logo mais.
Ao churrasco de posse compareceram os
mais fiéis correligionários de Juvenal: Kahr, Kaledin, Kamorra,
Kapp, Karensen, Karim, Karma, Katazan, Kazuki, Kebab, Keitel, Kernig,
Kirill, Kital, Klaus, Kleber, Kramer, Kreuger, Kris, Kuklux, Kulak,
Kurn, Kussmaul e só espero não ter omitido nenhum. Esses jovens
conselheiros do conselheiro-mor acomodaram-se em mesinhas dispostas
informalmente no gramado da Estância Castelã. O ambiente, muito
descontraído, tinha por background o som nostálgico de Who’s
sorry now, Moonlight Serenade, Whispering e outras. Compassadamente
foram brotando ninguém sabe de onde as mais requintadas receitas da
nossa recente gastronomia típica. O baby-beef all’uterina, por
exemplo, esteve magnífico. O churrasco ao vivo, ou live barbecue,
como queria o menu. Cartilagem grelhada, língua defumada, rabada,
criadillas regadas a um Sangue di Bue Stravecchio de ano ímpar. Mas
o grande sucesso da noite foi sem dúvida o steack tartare à la
minute. Seu preparo requer um animal cheio de saúde que deve ser
atado pelos pulsos e tornozelos a uma trave horizontal, de maneira
que seu lombo fique pendulando a meia altura. Utilizar um facão bem
afiado para abrir o lombo e, com uma colher ou concha, selecionar as
melhores carnes. Picá-las rapidamente, para que não esfriem,
mexendo-as e amalgamando-as com uma gema de ovo. Com a outra mão
tempere a carne: três pitadas de sal, duas de pimenta do reino, um
dente de alho, cebola a gosto e uma colher, das de sopa, de sopa de
leite. Agite o preparado numa terrina a caminho da mesa de Juvenal
que, naturalmente, não podia saber o que se passava lá em baixo na
cozinha. Só dava para ouvir uns urros que se confundiam com os
hurras e se somavam à orquestra sem chocar.
Depois da palitagem houve discurso.
Juvenal levantou-se e começou assim:
— Quem semeia vento colhe tempestade —
frase que soou dura demais em sua língua. Alguns estranharam,
tossiram. Kahr e Kleber aplaudiram de pé. Logo arrematou Juvenal: —
Depois da tempestade, vem a bonança — e aí se reconheceu o bom
Juvenal, seu timbre e sua tempera.
Agradecendo e transferindo a Deus os
altos compromissos em que estava obrigado perante seu povo, Juvenal,
o Humilde, absteve-se de maiores demagogias. Afirmou que cumpriria
seu dever munido apenas do fervor e da continência de um cruzado.
Apelou para a abnegação de seus assessores diretos, chamando-os de
meus escudeiros, para que compartilhassem da árdua missão que lhe
fora confiada. Chamando-os esteio da estância, ganhou demorados
aplausos. Insistiu:
— Manos da manada. (bis)
Prosseguindo estendeu sua voz a todo o
povo da Fazenda Modelo que não fora convidado para o banquete.
Destacou a dita cabeceira do rebanho, as classes por assim dizer
superiores, as classes a partir de então muito produtoras, cuja
prosperidade estaria intimamente vinculada ao processo de
desenvolvimento acelerado da nova Fazenda (aplausos). Fazia-se
imprescindível, mais que nunca, o apoio de tais classes. Quaisquer
eventuais sacrifícios terminariam por se refletir, fatal e
positivamente, na consolidação de seus próprios interesses. E em
troca desses sacrifícios, os suseranos estariam a salvo de bárbaros
e tártaros, invasões e inversões, aplausos. Palavra de Juvenal,
por alcunha o Tenaz.
Como ainda não existe suserano sem
vassalagem, Juvenal também dirigiu a palavra às classes menos
favorecidas, as quais um dia haveriam de lucrar, em proporção
indireta, com o desenvolvimento integral e racional da Fazenda
Modelo. Por enquanto pedia-lhes um pouco de paciência pois Roma não
se fez num dia. E as riquezas da Fazenda, é mister concentrá-las
antes de se pensar numa distribuição, senão atrapalha toda a
contabilidade. E a situação em que essas reses se encontravam era
fruto de seus erros atávicos acumulados através dos séculos:
imprevidência, ignorância, inoperância, inobservância, inanição,
aplausos. As classes menos qualificadas deveriam pois aguardar nos
descampados para evitar as contaminações e a degeneração das
demais raças. Mas quem viver verá, disse Juvenal, o Justo. Os
vassalos comprarão sua alforria interior, passando a gozar de feudos
imateriais e inestimáveis. Serão orgulhosos de servir seus
senhores, visto que estes apreciarão seus serviços. Sofrerão a
corvéia com a dignidade a que todos temos direito. E nada impede
que, em futuro remoto, a fermentação e a compressão da substância
impura acabem por destilar um perfume nobre. Aplausos. Tumulto.
Juvenal:
— Ninguém se esqueça que somos todos
filhos de Deus. Somos filhos do mesmo Bos. E os irmãos do
descampado, ainda que à distância, poderão acompanhar nossos
progressos passo a passo aplausos.
Chico Buarque de Holanda, in Fazenda Modelo
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