sábado, 20 de março de 2021

Juvenal

          É preciso esclarecer desde já que, se uma série de incidentes desagradáveis, arbitrariedades, atrocidades mesmo, passaram a ocorrer com frequência a partir de sua gestão, Juvenal e sua bondade estiveram sempre alheios. Alguns de seus subordinados, delegados para o cumprimento de determinadas tarefas, certamente exorbitaram de suas atribuições. Certos indivíduos ficaram tão felizes com a nova situação que, no auge dessa felicidade, cometeram alguns desmandos. Mas a História há de isentar Juvenal, o Bom Boi, de toda e qualquer responsabilidade quanto aos fatos que se seguem. Todos sabem que ele sempre e apenas cumpriu ordens superiores. Ordens misteriosas, talvez divinas. E se ordens sibilinas lhe roçavam as orelhas, ou lhe arrepiavam os pêlos, ou lhe passavam entre as pernas, tais eram matérias que Juvenal nunca poderia interceptar. É isso, Juvenal era incapaz de interferência. Nem por outro motivo fora ele nomeado nosso supremo e incontestável senhor.
Primeiro pronunciamento de Juvenal:
Vamos dar nome aos bois.
Quatro agentes de confiança foram destacados para o serviço: Klaus, Karim, Kamorra e Katazan. Era evidente a euforia com que desceram ao pasto. Um desempenho inédito. O cirurgião Klaus, encarregado de descornar as bestas, era o mais eficiente. Além dos chifres, fazia questão de levar orelhas, beiços, unhas, dente por dente, diz ele que para comemorar a data. A quem protestasse amputava um pé. O artesão Karim, encarregado da ferra, era o mais inspirado. Não satisfeito com a simples impressão das iniciais da Fazenda (FM), tatuava as letras nas mais formidáveis combinações, até que as carcaças ficassem lembrando um mosaico:


Kamorra e Katazan, incumbidos das castrações, mal comportavam a saliva nas bocas. Colhendo ovos e ovários, tilintando torquezas e torniquetes, quase que já degustavam os guisados do churrasco logo mais.
Ao churrasco de posse compareceram os mais fiéis correligionários de Juvenal: Kahr, Kaledin, Kamorra, Kapp, Karensen, Karim, Karma, Katazan, Kazuki, Kebab, Keitel, Kernig, Kirill, Kital, Klaus, Kleber, Kramer, Kreuger, Kris, Kuklux, Kulak, Kurn, Kussmaul e só espero não ter omitido nenhum. Esses jovens conselheiros do conselheiro-mor acomodaram-se em mesinhas dispostas informalmente no gramado da Estância Castelã. O ambiente, muito descontraído, tinha por background o som nostálgico de Who’s sorry now, Moonlight Serenade, Whispering e outras. Compassadamente foram brotando ninguém sabe de onde as mais requintadas receitas da nossa recente gastronomia típica. O baby-beef all’uterina, por exemplo, esteve magnífico. O churrasco ao vivo, ou live barbecue, como queria o menu. Cartilagem grelhada, língua defumada, rabada, criadillas regadas a um Sangue di Bue Stravecchio de ano ímpar. Mas o grande sucesso da noite foi sem dúvida o steack tartare à la minute. Seu preparo requer um animal cheio de saúde que deve ser atado pelos pulsos e tornozelos a uma trave horizontal, de maneira que seu lombo fique pendulando a meia altura. Utilizar um facão bem afiado para abrir o lombo e, com uma colher ou concha, selecionar as melhores carnes. Picá-las rapidamente, para que não esfriem, mexendo-as e amalgamando-as com uma gema de ovo. Com a outra mão tempere a carne: três pitadas de sal, duas de pimenta do reino, um dente de alho, cebola a gosto e uma colher, das de sopa, de sopa de leite. Agite o preparado numa terrina a caminho da mesa de Juvenal que, naturalmente, não podia saber o que se passava lá em baixo na cozinha. Só dava para ouvir uns urros que se confundiam com os hurras e se somavam à orquestra sem chocar.
Depois da palitagem houve discurso. Juvenal levantou-se e começou assim:
Quem semeia vento colhe tempestade — frase que soou dura demais em sua língua. Alguns estranharam, tossiram. Kahr e Kleber aplaudiram de pé. Logo arrematou Juvenal: — Depois da tempestade, vem a bonança — e aí se reconheceu o bom Juvenal, seu timbre e sua tempera.
Agradecendo e transferindo a Deus os altos compromissos em que estava obrigado perante seu povo, Juvenal, o Humilde, absteve-se de maiores demagogias. Afirmou que cumpriria seu dever munido apenas do fervor e da continência de um cruzado. Apelou para a abnegação de seus assessores diretos, chamando-os de meus escudeiros, para que compartilhassem da árdua missão que lhe fora confiada. Chamando-os esteio da estância, ganhou demorados aplausos. Insistiu:
Manos da manada. (bis)
Prosseguindo estendeu sua voz a todo o povo da Fazenda Modelo que não fora convidado para o banquete. Destacou a dita cabeceira do rebanho, as classes por assim dizer superiores, as classes a partir de então muito produtoras, cuja prosperidade estaria intimamente vinculada ao processo de desenvolvimento acelerado da nova Fazenda (aplausos). Fazia-se imprescindível, mais que nunca, o apoio de tais classes. Quaisquer eventuais sacrifícios terminariam por se refletir, fatal e positivamente, na consolidação de seus próprios interesses. E em troca desses sacrifícios, os suseranos estariam a salvo de bárbaros e tártaros, invasões e inversões, aplausos. Palavra de Juvenal, por alcunha o Tenaz.
Como ainda não existe suserano sem vassalagem, Juvenal também dirigiu a palavra às classes menos favorecidas, as quais um dia haveriam de lucrar, em proporção indireta, com o desenvolvimento integral e racional da Fazenda Modelo. Por enquanto pedia-lhes um pouco de paciência pois Roma não se fez num dia. E as riquezas da Fazenda, é mister concentrá-las antes de se pensar numa distribuição, senão atrapalha toda a contabilidade. E a situação em que essas reses se encontravam era fruto de seus erros atávicos acumulados através dos séculos: imprevidência, ignorância, inoperância, inobservância, inanição, aplausos. As classes menos qualificadas deveriam pois aguardar nos descampados para evitar as contaminações e a degeneração das demais raças. Mas quem viver verá, disse Juvenal, o Justo. Os vassalos comprarão sua alforria interior, passando a gozar de feudos imateriais e inestimáveis. Serão orgulhosos de servir seus senhores, visto que estes apreciarão seus serviços. Sofrerão a corvéia com a dignidade a que todos temos direito. E nada impede que, em futuro remoto, a fermentação e a compressão da substância impura acabem por destilar um perfume nobre. Aplausos. Tumulto. Juvenal:
Ninguém se esqueça que somos todos filhos de Deus. Somos filhos do mesmo Bos. E os irmãos do descampado, ainda que à distância, poderão acompanhar nossos progressos passo a passo aplausos.

Chico Buarque de Holanda, in Fazenda Modelo

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