terça-feira, 16 de março de 2021

Fatalidade

          Foi o caso que um homenzinho, recém-aparecido na cidade, veio à casa do Meu Amigo, por questão de vida e morte, pedir providências. Meu Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia. Por tudo, talvez, costumava afirmar: — “A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio.” Meu Amigo sendo fatalista.
Na data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando ao alvo, com carabinas e revólveres, revezadamente. Meu Amigo, a bom seguro que, no mundo, ninguém, jamais, atirou quanto ele tão bem — no agudo da pontaria e rapidez em sacar arma; gastava nisso, por dia, caixas de balas. Estava justamente especulando: — “Só quem entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades.” Fatalista como uma louça, o Meu Amigo. Sucedeu nesse comenos que o vieram chamar, que o homenzinho o procurava.
O qual, vendo-se que caipira, ar e traje. Dava-se de entre vinte-e-muitos e trinta anos; devia de ter bem menos, portanto. Miúdo, moído. Mas concreto como uma anta, e carregado o rosto, gravado, tão submetido, o coitado; as mãos calosas, de enxadachim. Meu Amigo, mandando-lhe sentar e esperar, continuou, baixo, a conversa; fio que, apenas, para poder melhor observar o outro, vez a vez, com o rabo-do-olho, aprontando-lhe a avaliação. Do que disse: — “Se o destino são componentes consecutivas — além das circunstâncias gerais de pessoa, tempo e lugar... e o karma...” Ponto é que o Meu Amigo existia, muito; não se fornecia somente figura fabulável, entenda-se. O homenzinho se sentara na ponta da cadeira, os pés e joelhos juntos, segurando com as duas mãos o chapéu; tudo limpinho pobre.
Convidado a dizer-se, declinou que de nome José de Tal, mas, com perdão, por apelido Zé Centeralfe. Sentia-se que ele era um sujeito já arrumado em si; nem estava muito nervoso. Embrulhava-se a falar, por gravidade: — “Sou homem de muita lei... Tenho um primo oficial-de-justiça... Mas não me abrange socorro... Sou muito amante da ordem...” Meu Amigo murmurou mais ou menos: — “Não estamos debaixo da lei, mas da graça...” — cuido que citasse epístola de São Paulo; e receei que ele não simpatizasse com Zé Centeralfe. Mas, o homenzinho, posto em cruz comprida, e porque se achasse rebaixado, quase desonrado — e ameaçado — viera dar parte. Apanhou o chapéu, que caíra ao chão, com a mão o espanava.
Representou: que era casado, em face do civil e da igreja, sem filhos, morador no arraial do Pai-do-Padre. Vivia tão bem, com a mulher, que tirava divertimento do comum e no trabalho não compunha desgosto. Mas, de mandado do mal, se deu que foi infernar lá um desordeiro, vindiço, se engraçou desbrioso com a mulher, olhou para ela com olho quente... — “Qual é o nome?” — Meu Amigo o interrompeu; ele seguia biograficamente os valentões do Sul do Estado. — “É um Herculinão, cujo sobrenome Socó...” — explicou o homenzinho. Meu Amigo voltou-se, rosnou: — “Horripilante badameco...” Por certo esse Herculinão Socó desmerecesse a mínima simpatia humana, ao contrário, por exemplo, do jovem Joãozinho do Cabo-Verde, que se famigerara das duas bandas da divisa, mas, ao conhecer pessoalmente Meu Amigo — ... “um homem de lealdade tão ilustre” ... — resolveu passar-se definitivo para o lado paulista, a fim de com ele jamais ter de ver-se em confusão. Sem saber o quê, o homenzinho Zé Centeralfe aprovava com a cabeça. Relatava.
Só para atalhar discórdias, prudenciara; sempre seria melhor levar à paciência. E se humilhara, a menos não poder. Mas, o outro, rufião biltre, não tinha emenda, se desbragava, não cedia desse atrevimento. — “Ele não tem estatutos. Quem vai arrazoar com homem de má cabeça? Para isso não tenho cara...” Só se para o vir-às-mãos, para alguma injusta desgraça. Nem podia dar querela: a marca de autoridade, no Pai-do-Padre, se estava em falta. A mulher não tinha mais como botar os pés fora da porta, que o homem surgia para desusar os olhos nela, para a desaforar, com essas propostas. — “Somente a situação empiorava, por culpa de hirsúcia daquele homem alheio...” Curvara-se, sempre de meia-esguelha, a ponto que parecia cair da cadeira. Meu Amigo animou-o: — “Quanta crista!” — e aí ele depositou no colo o chapéu, e direito se sentou.
Sucedendo-se os sustos e vexames, não acharam outro meio. Ele e a mulher decidiram se mudar. — “Sendo para a pobreza da gente um cortado e penoso. Afora as saudades de se sair do Pai-do-Padre; a gente era de muita estimação lá.” Mas, para considerar Deus, e não traspassar a lei, o jeito era. — “Larguei para o arraial do Amparo...” Arranjaram no Amparo uma casinha, uma roça, uma horta. Mas, o homem, o nominoso, não tardou em aparecer, sempre no malfazer, naquela sécia. Se arranchou. Sua embirração transfazia um danado de poder, todos dele tomavam medo. E foi a custo ainda maior, e quase à escondida, que José Centeralfe e a esposa conseguiram fugir de lá também, tendo pesar.
Por conta daquele. — “Cujalma!” — proferiu Meu Amigo, meticuloso indo ajeitar uma carabina, que se exibia, oblíqua, na parede. Pois a sala — de tão repleta de: rifles, pistolas, espingardas — semelhava o que nunca se vê. — “Esta leva longe...” — disse, e riu, um tanto malignamente. Tornou a sentar-se, porém, sorrindo agradado para o José Centeralfe.
Mas mais o homenzinho se ensombrara.
Fosse chorar?
Falou: — “Viajamos para cá, e ele, nos rastros, lastimando a gente. É peta. Não me perdeu de vistas. Adonde vou, o homem me atravessa... Tenho de tomar sentido, para não entestar com ele.” Durou numa pausa. Daí, pela primeira vez, alçou a voz: — “Terá o jus disso, o que passa das marcas? É réu? É para se citar? É um homem de trapaças, eu sei. Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei...” Tanto dito, calou-se, em silêncio médio; pedia, com olhos de cachorro.
Meu Amigo fez uma coisa. Virou, por metade, o rosto, para encarar aquela carabina. Sério, carregando o minuto. Só. Sem voz. Mais nela afirmando a vista, enquanto umas quantas vezes rabeava com os olhos, na direção do homenzinho; em ato, chamando-o a que também a olhasse, como que a o puxar à lição. Mas o outro ainda não entendia que ele acenasse em alguma coisa. Sem tanto, que deu: — “E eu o que faço?” — na direta perguntação. Surdeava o Meu Amigo, pato-mudo. Soprou nos dedos. Sempre em fito, na arma, na parede, e remirando o outro — ao tempo que — tanto quanto tanto. De feito. O homenzinho se arregalou — de desperto. Desde que desde, ele entendesse, a ver o que para valer: a chave do jogo. Entendeu. Disse: — “Ah.” E se riu: às razões e conseqüências. Donde bem, se levantou; podia portar por fé.
Sem mais perplexidades, se ia. Agradecia, reespiritado, com sua força de seu santo. Ia a sair. Meu Amigo só ainda perguntou: — “Quer café... ou uma cachacinha?” E o outro, de sisório: — “Seja, que aceito... despois.” Outras palavras não trocaram. Meu Amigo apertou-lhe a mão. Sim, se foi, o José Centeralfe.
Meu amigo, tão valedor, causavelmente, de vá-à-garra o deixava? Comentou: — “Coronha ou cano...” O homenzinho, tão perecível, um fagamicho, o mofino — era para esforço tutânico? Meu Amigo sendo o dono do caos. Porém, revistando sua arma, se o tambor se achava cheio. Disse: — “Sigamos o nosso carecido Aquiles...” Pois se pois.
Seguimo-lo.
Ele ia, e muito.
Tinha-se de dobrar o passo.
E — de repente e súbito — precipitou-se a ocasião: lá vinha, fatalmente, o outro, o Herculinão, descompassante. Meu Amigo soprou um semi-espirro, canino, conforme seu vezo e uso, em essas, em cheirando a pólvoras.
E... foi: fogo, com rapidez angélica: e o falecido Herculinão, trapuz, já arriado lá, já com algo entre os próprios e infra-humanos olhos, lá nele — tapando o olho-da-rua. Não há como o curso de uma bala; e — como és bela e fugaz, vida!
Três, porém, haviam tirado arma, e dois tiros tinham-se ouvido? Só o Herculinão não teve tempo. Com outra bala, no coração. Homem lento.
O Centeralfe se explicou: — “Este iscariotes...”
Meu Amigo, não. Disse um “Oh” polissilábico, sem despesas de emoção. Disse: — “Tudo não é escrito e previsto? Hoje, o deste homem. Os gregos...” Disse: — “Mas... a necessidade tem mãos de bronze...” Disse: — “Resistência à prisão, constatada...” Dissera um “não”, metafisicado.
Sem repiques nem rebates, providenciava a remoção do Herculinão, com presteza, para sua competente cova.
E convidava-nos a almoçar, ao Zé Centeralfe, principalmente.
Meditava, o Meu Amigo. Disse: — “Esta nossa Terra é inabitada. Prova-se, isto...” — pontuante.

Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

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