segunda-feira, 15 de março de 2021

Colher rosa

Minha mãe prezava as rendas pelo que havia nelas de fragilidade e trabalho. Todas as suas costuras eram arrematadas com rendas nas margens. Na ausência de rendas, ela mesma as tecia, pacientemente, com linhas de seda, trazidas da China, para presentear nossos olhos com mais cortesia. Ela não escolhia os lados. Toda margem, mesmo as do riacho da cidade, merecia seu desvelo.

Não, não é somente a flecha da palavra que acorda a memória de seu estupor. O incenso é um perfume que me suscita para a incerteza de Deus. A rara fragrância da alfazema guia-me para o bem profundo, pátria definitiva de minha mãe. O Lancaster me devolve à vaidade que houve. O ácido perfume do alecrim me abre em viagens por fazer. O odor da mortadela deslancha em mim fragmentos de afagos, relíquias escassas do pai. O tomate não exala nenhum cheiro. É da índole do tomate manifestar-se apenas em cor e cólera.

O amor, ao anunciar-se, assustou-me. Invadiu-me de repente, sem pedir licença ou por favor. E naquele tempo se usava pedir desculpas para ser feliz. A felicidade nos era interditada. Toda tristeza prenunciava uma felicidade que não chegava. Dormi e, ao despertar-me, já amava. Acordei-me em saudade. Não sei o itinerário do sonho naquela noite. Nada mais me incomodava: o tomate, o bife, o álcool. Só embalava-me o porão do sobrado da casa, onde nos amávamos, sobre chão de terra e sob céu de tábuas corridas. Talvez tenha sonhado com girassóis, sem conhecê-los. Sabia apenas que eram flores exageradas, cresciam sem medo. Não exageradas como o sono do morto.

No fundo do quintal, e contíguo aos tomateiros, germinavam pequenos raminhos de beijos, bocas-de-leão, amores-perfeitos. Brotavam rosas protegidas por espinhos, que mereciam muita tenência para não ferir os dedos. Colher rosa, uma tarefa perigosa e não valia a pena, ou valia tantas penas. Na rosa, a vida é breve, e, nas feridas, a vida é longa. Melhor deixá-la murchar em seu ramo e apreciá-la à distância. Continuamente, eu sofria pelo medo de sofrer.

Mentir a si mesmo é uma fórmula para aliviar-se. E não há contra-prejuízo ao enganar-se. O pecado sobrevive dentro do pecador. Cada mentira é mais outra fantasia. Os pingos da torneira da cozinha, noite adentro, perturbavam nosso sono. Só a mãe mentia às torneiras, interrompendo o ritmado barulho. Amarrava um pano na torneira e deixava a ponta do tecido se estender até o fundo da pia. O tecido absorvia as gotas e se encharcava sem interromper o destino das águas, morrendo no bem fundo do bojo. Ela sabia camuflar o ruído sem interromper as águas. A mãe fazia a fantasia virar verdade.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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