terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Um físico e um cardeal conversam sobre fé e ciência

          Muitos de meus colegas de profissão, talvez a maioria deles, considerariam uma grande perda de tempo dividir um palco com um cardeal do Vaticano para conversar sobre ciência e religião. Os mais extremos diriam que fazer isso é dar à religião uma credibilidade que não merece. Dado que discordo frontalmente desse tipo de atitude radical proveniente do que hoje chamamos de cientificismo, em abril de 2016 fui ao Teatro Tuca, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, para conversar com o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho de Cultura do Vaticano. Foi uma noite memorável e inspiradora.
Dentro da tradição historicamente conservadora do Vaticano, fiquei surpreso com a atitude de Ravasi, de franca abertura à ciência. Afinal, esse é o mesmo Vaticano que, apenas em 1992, sob ordem do então papa João Paulo II, admitiu ter errado ao condenar Galileu Galilei 359 anos antes por afirmar que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário. Ravasi vem construindo conexões com cientistas do mundo inteiro, organizando debates públicos onde são discutidas questões de grande importância para a sociedade, incluindo temas como a pesquisa e o uso das células-tronco na medicina, a ética do uso de drogas nos esportes, a possibilidade de a moralidade ser independente da religião e o futuro da espécie humana tendo em vista a integração crescente das tecnologias digitais nas nossas vidas. Para estabelecer uma plataforma de suporte a essa iniciativa, Ravasi seguiu as diretrizes do papa Bento XVI e ressuscitou o Átrio dos Gentios, um fórum para promover o diálogo construtivo entre cristãos e não crentes, explorando questões relacionadas com “fé e razão, e cultura secular e Igreja”.
Interessante que o Átrio dos Gentios original ficava no Segundo Templo em Jerusalém, e designava a área onde judeus e não judeus podiam circular livremente, comprar e vender mercadorias, trocar dinheiro ou sacrificar animais. Foi ali que, segundo todos os evangelhos, Jesus teve sua altercação com os negociantes, acusando-os de perverter a santidade do Templo. No caso do Átrio mais recente, a ideia é abrir as portas da Igreja para uma discussão franca sobre questões de interesse para crentes e não crentes, supostamente com menos animosidade. Abri a noite explicando como a ciência amplifica nossa visão da realidade, criando uma narrativa do mundo natural que é constantemente revisada; expliquei como a ciência contribuiu de forma essencial para mudar nossa visão de mundo no passado, e como continuará a fazê-lo no futuro, ao explorarmos os confins do mundo material, do nível subatômico e humano ao cosmológico.
Mencionei Einstein, que nos convida ao engajamento com o “Mistério”, a fonte que inspira o trabalho criativo tanto nas artes quanto nas ciências. Argumentei que existe uma dimensão espiritual na ciência, ao induzir uma relação mais íntima e profunda com a Natureza. Argumentei, também, que a ciência moderna está redefinindo nossa posição no cosmo, distanciando-se do copernicanismo tradicional, que afirma que quanto mais aprendemos sobre o mundo menos importante somos. Essa interpretação é profundamente nociva para a percepção pública da ciência, já que afirma que a ciência não tem qualquer papel na nossa busca por sentido: qual o sentido da vida se vivemos num Universo gigantesco e frio, que pouco liga para nós?
Ou, como se escuta dizer em debates mais populares, a ciência roubou Deus da gente e não ofereceu nada em troca. Minha posição, que chamo de humano-centrismo, vai de encontro a esta visão, propondo que a variedade de outros mundos no cosmo e a compreensão que temos hoje dos vários passos que a vida teve que dar para evoluir de simples células procariotas até seres humanos indicam que a vida inteligente seja extremamente rara, mesmo sem excluir sua possível existência em outros cantos da galáxia. O humano-centrismo tem consequências imediatas, já que nos transforma nessa entidade rara, máquinas moleculares capazes de sentir, pensar e de se questionar sobre a existência. Surpreendentemente, ao menos de forma metafórica, a ciência moderna nos restitui uma posição central no cosmo, como guardiões da vida e do planeta onde existimos.
Concluí propondo a necessidade de uma complementaridade do conhecimento humano, que vai além da simples tolerância das diferenças. Existem diferentes modos de entender e examinar a mesma questão, diferentes modos de se engajar com o mundo. Por exemplo, ao olharmos para um cálice de vinho, podemos examiná-lo sob várias perspectivas. Bioquimicamente, como produto de um processo de fermentação; opticamente, ao estudarmos sua cor, os reflexos da luz no cristal; fisicamente, como um fluido de certa densidade, em repouso a uma determinada temperatura e pressão atmosférica, no campo gravitacional da Terra; sociologicamente, como produto agrícola em algum país distante com certas leis trabalhistas; economicamente, como um produto que compete no mercado internacional; ecologicamente, como algo que implicou o desmatamento de alguma área, o uso de técnicas inseticidas próprias e os poluentes liberados na atmosfera no transporte da fazenda até a loja onde compramos a garrafa.
Adicionalmente, temos outro lado para examinarmos o cálice de vinho, complementar a essas análises mais técnicas: sua beleza estética, a simetria das formas, a sensação de tocar e manipular o cálice, o aroma do vinho, seu gosto tão único e, talvez ainda mais importante, a companhia com quem estamos dividindo esse momento, as emoções que vêm dessa presença, o significado da experiência, única para cada um de nós. Dentro dessa óptica, exigir de um crente uma prova concreta da existência de Deus não faz sentido. A fé consiste em acreditar no que não pode ser (ou não foi ainda) provado. Por outro lado, insistir que textos religiosos explicam ou podem prever fenômenos naturais de forma científica é uma proposta absurda. Como disse Galileu, a Bíblia não foi escrita para descrever como vão os céus, mas como se vai ao céu. Felizmente, Ravasi não é um literalista. Pelo contrário, citou Santo Agostinho como alguém que já havia reconhecido os perigos de usar a Bíblia como texto com valor científico.
Se Ravasi fosse literalista, não teria aceitado dialogar com ele. Aqueles que se dizem crentes constituem em torno de dois terços da população mundial, mais do que 4 bilhões de pessoas. Denegrir sua fé como uma espécie de delírio ou loucura não leva a nada. Ravasi desconsidera os pronunciamentos mais incendiários de alguns ateus radicais sugerindo, como alternativa, uma troca aberta de ideias. Em determinado momento, propôs três modos de olhar para o mundo: para baixo, ao explorarmos a matéria que constitui as coisas; para a frente, na relação com outras pessoas e seres vivos; para cima, na busca por alguma forma de transcendência. Precisamos dos três modos, mesmo que se manifestem de formas diferentes para cada um. Raramente mencionou Deus, defendendo a necessidade de uma busca pluralista pelo conhecimento, que ressoa positivamente com minha proposta de complementaridade do saber. Ravasi mencionou o biólogo americano Stephen Jay Gould e sua proposta de magistérios que não se superpõem (do inglês, Non-Overlapping Magisteria, ou NOMA), que mencionamos aqui no ensaio anterior. Segundo Gould, ciência e religião deveriam existir em paralelo, sem interferência.
Ravasi saudou a iniciativa de Gould, que, afinal, põe a religião em pé de igualdade com a ciência. Porém, sugeriu que devemos ir além para criar uma visão mais coesiva. Brincou que, nos tempos de Galileu, seria inconcebível ter um cientista dividindo o palco com um cardeal. Naquela época, os homens da Igreja é que se recusariam a dividir o palco com um mero cientista. “Os tempos mudaram”, disse, “e devemos mudar com eles.” O cardeal pareceu-me completamente sincero e autêntico. Vi com alívio que o Vaticano hoje tem pessoas como ele em postos de comando. Ravasi está disposto a escrever um novo capítulo na longa e tortuosa história do debate entre a ciência e a Igreja, com um final mais feliz do que seus antecessores. Ficou claro para os presentes que o objetivo desses diálogos não é tentar convencer o outro.
Esse seria um exercício supérfluo, como já deveríamos ter aprendido. A proposta é estar aberto para ouvir o outro, sem recorrer aos recursos limitados de um tribalismo em que o “outro”, aquele com opiniões diversas da sua, é necessariamente um ser inferior que precisa ser eliminado ou convertido. Ficou claro, também, que um diálogo desse tipo seria impossível entre facções radicais. Não poderia conversar sobre ciência e fé com um literalista, ou mesmo com um primo distante meu, que é judeu ortodoxo. Os argumentos de um literalista são absurdos para a maioria dos cientistas, e com razão. Somos criaturas finitas, num mundo cheio de desafios, com mais perguntas do que respostas. Fatos, valores, crenças e tradições formam uma rica teia em que é fácil se perder. O fundamento de um diálogo construtivo entre a fé e a ciência é reconhecer que, mesmo considerando todas as diferenças, a busca por sentido é de cada um e de todos nós. A perplexidade de estarmos vivos, mesmo se a expressamos de modo diverso, é parte da nossa essência.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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