Muitos de meus colegas de profissão,
talvez a maioria deles, considerariam uma grande perda de tempo
dividir um palco com um cardeal do Vaticano para conversar sobre
ciência e religião. Os mais extremos diriam que fazer isso é dar à
religião uma credibilidade que não merece. Dado que discordo
frontalmente desse tipo de atitude radical proveniente do que hoje
chamamos de cientificismo, em abril de 2016 fui ao Teatro Tuca, da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, para conversar com o
cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho de
Cultura do Vaticano. Foi uma noite memorável e inspiradora.
Dentro da tradição historicamente
conservadora do Vaticano, fiquei surpreso com a atitude de Ravasi, de
franca abertura à ciência. Afinal, esse é o mesmo Vaticano que,
apenas em 1992, sob ordem do então papa João Paulo II, admitiu ter
errado ao condenar Galileu Galilei 359 anos antes por afirmar que a
Terra gira em torno do Sol e não o contrário. Ravasi vem
construindo conexões com cientistas do mundo inteiro, organizando
debates públicos onde são discutidas questões de grande
importância para a sociedade, incluindo temas como a pesquisa e o
uso das células-tronco na medicina, a ética do uso de drogas nos
esportes, a possibilidade de a moralidade ser independente da
religião e o futuro da espécie humana tendo em vista a integração
crescente das tecnologias digitais nas nossas vidas. Para estabelecer
uma plataforma de suporte a essa iniciativa, Ravasi seguiu as
diretrizes do papa Bento XVI e ressuscitou o Átrio dos Gentios, um
fórum para promover o diálogo construtivo entre cristãos e não
crentes, explorando questões relacionadas com “fé e razão, e
cultura secular e Igreja”.
Interessante que o Átrio dos Gentios
original ficava no Segundo Templo em Jerusalém, e designava a área
onde judeus e não judeus podiam circular livremente, comprar e
vender mercadorias, trocar dinheiro ou sacrificar animais. Foi ali
que, segundo todos os evangelhos, Jesus teve sua altercação com os
negociantes, acusando-os de perverter a santidade do Templo. No caso
do Átrio mais recente, a ideia é abrir as portas da Igreja para uma
discussão franca sobre questões de interesse para crentes e não
crentes, supostamente com menos animosidade. Abri a noite explicando
como a ciência amplifica nossa visão da realidade, criando uma
narrativa do mundo natural que é constantemente revisada; expliquei
como a ciência contribuiu de forma essencial para mudar nossa visão
de mundo no passado, e como continuará a fazê-lo no futuro, ao
explorarmos os confins do mundo material, do nível subatômico e
humano ao cosmológico.
Mencionei Einstein, que nos convida ao
engajamento com o “Mistério”, a fonte que inspira o trabalho
criativo tanto nas artes quanto nas ciências. Argumentei que existe
uma dimensão espiritual na ciência, ao induzir uma relação mais
íntima e profunda com a Natureza. Argumentei, também, que a ciência
moderna está redefinindo nossa posição no cosmo, distanciando-se
do copernicanismo tradicional, que afirma que quanto mais aprendemos
sobre o mundo menos importante somos. Essa interpretação é
profundamente nociva para a percepção pública da ciência, já que
afirma que a ciência não tem qualquer papel na nossa busca por
sentido: qual o sentido da vida se vivemos num Universo gigantesco e
frio, que pouco liga para nós?
Ou, como se escuta dizer em debates mais
populares, a ciência roubou Deus da gente e não ofereceu nada em
troca. Minha posição, que chamo de humano-centrismo, vai de
encontro a esta visão, propondo que a variedade de outros mundos no
cosmo e a compreensão que temos hoje dos vários passos que a vida
teve que dar para evoluir de simples células procariotas até seres
humanos indicam que a vida inteligente seja extremamente rara, mesmo
sem excluir sua possível existência em outros cantos da galáxia. O
humano-centrismo tem consequências imediatas, já que nos transforma
nessa entidade rara, máquinas moleculares capazes de sentir, pensar
e de se questionar sobre a existência. Surpreendentemente, ao menos
de forma metafórica, a ciência moderna nos restitui uma posição
central no cosmo, como guardiões da vida e do planeta onde
existimos.
Concluí propondo a necessidade de uma
complementaridade do conhecimento humano, que vai além da simples
tolerância das diferenças. Existem diferentes modos de entender e
examinar a mesma questão, diferentes modos de se engajar com o
mundo. Por exemplo, ao olharmos para um cálice de vinho, podemos
examiná-lo sob várias perspectivas. Bioquimicamente, como produto
de um processo de fermentação; opticamente, ao estudarmos sua cor,
os reflexos da luz no cristal; fisicamente, como um fluido de certa
densidade, em repouso a uma determinada temperatura e pressão
atmosférica, no campo gravitacional da Terra; sociologicamente, como
produto agrícola em algum país distante com certas leis
trabalhistas; economicamente, como um produto que compete no mercado
internacional; ecologicamente, como algo que implicou o desmatamento
de alguma área, o uso de técnicas inseticidas próprias e os
poluentes liberados na atmosfera no transporte da fazenda até a loja
onde compramos a garrafa.
Adicionalmente, temos outro lado para
examinarmos o cálice de vinho, complementar a essas análises mais
técnicas: sua beleza estética, a simetria das formas, a sensação
de tocar e manipular o cálice, o aroma do vinho, seu gosto tão
único e, talvez ainda mais importante, a companhia com quem estamos
dividindo esse momento, as emoções que vêm dessa presença, o
significado da experiência, única para cada um de nós. Dentro
dessa óptica, exigir de um crente uma prova concreta da existência
de Deus não faz sentido. A fé consiste em acreditar no que não
pode ser (ou não foi ainda) provado. Por outro lado, insistir que
textos religiosos explicam ou podem prever fenômenos naturais de
forma científica é uma proposta absurda. Como disse Galileu, a
Bíblia não foi escrita para descrever como vão os céus, mas como
se vai ao céu. Felizmente, Ravasi não é um literalista. Pelo
contrário, citou Santo Agostinho como alguém que já havia
reconhecido os perigos de usar a Bíblia como texto com valor
científico.
Se Ravasi fosse literalista, não teria
aceitado dialogar com ele. Aqueles que se dizem crentes constituem em
torno de dois terços da população mundial, mais do que 4 bilhões
de pessoas. Denegrir sua fé como uma espécie de delírio ou loucura
não leva a nada. Ravasi desconsidera os pronunciamentos mais
incendiários de alguns ateus radicais sugerindo, como alternativa,
uma troca aberta de ideias. Em determinado momento, propôs três
modos de olhar para o mundo: para baixo, ao explorarmos a matéria
que constitui as coisas; para a frente, na relação com outras
pessoas e seres vivos; para cima, na busca por alguma forma de
transcendência. Precisamos dos três modos, mesmo que se manifestem
de formas diferentes para cada um. Raramente mencionou Deus,
defendendo a necessidade de uma busca pluralista pelo conhecimento,
que ressoa positivamente com minha proposta de complementaridade do
saber. Ravasi mencionou o biólogo americano Stephen Jay Gould e sua
proposta de magistérios que não se superpõem (do inglês,
Non-Overlapping Magisteria, ou NOMA), que mencionamos aqui no ensaio
anterior. Segundo Gould, ciência e religião deveriam existir em
paralelo, sem interferência.
Ravasi saudou a iniciativa de Gould, que,
afinal, põe a religião em pé de igualdade com a ciência. Porém,
sugeriu que devemos ir além para criar uma visão mais coesiva.
Brincou que, nos tempos de Galileu, seria inconcebível ter um
cientista dividindo o palco com um cardeal. Naquela época, os homens
da Igreja é que se recusariam a dividir o palco com um mero
cientista. “Os tempos mudaram”, disse, “e devemos mudar com
eles.” O cardeal pareceu-me completamente sincero e autêntico. Vi
com alívio que o Vaticano hoje tem pessoas como ele em postos de
comando. Ravasi está disposto a escrever um novo capítulo na longa
e tortuosa história do debate entre a ciência e a Igreja, com um
final mais feliz do que seus antecessores. Ficou claro para os
presentes que o objetivo desses diálogos não é tentar convencer o
outro.
Esse seria um exercício supérfluo, como
já deveríamos ter aprendido. A proposta é estar aberto para ouvir
o outro, sem recorrer aos recursos limitados de um tribalismo em que
o “outro”, aquele com opiniões diversas da sua, é
necessariamente um ser inferior que precisa ser eliminado ou
convertido. Ficou claro, também, que um diálogo desse tipo seria
impossível entre facções radicais. Não poderia conversar sobre
ciência e fé com um literalista, ou mesmo com um primo distante
meu, que é judeu ortodoxo. Os argumentos de um literalista são
absurdos para a maioria dos cientistas, e com razão. Somos criaturas
finitas, num mundo cheio de desafios, com mais perguntas do que
respostas. Fatos, valores, crenças e tradições formam uma rica
teia em que é fácil se perder. O fundamento de um diálogo
construtivo entre a fé e a ciência é reconhecer que, mesmo
considerando todas as diferenças, a busca por sentido é de cada um
e de todos nós. A perplexidade de estarmos vivos, mesmo se a
expressamos de modo diverso, é parte da nossa essência.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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