domingo, 21 de fevereiro de 2021

Pinto-Calçudo descobre a Bahia

       

          Pinto-Calçudo não é pinto-pinto. É português calçado de sapato, chapéu na cabeça e mosquete na mão. Sapato serve para esconder o pé, chapéu para fazer sombra na cara e mosquete serve para fazer fogo e fumaça. Serve até para matar passarinho, para matar onça e, quem sabe, será? Para matar índio também.
Pinto-Calçudo não é pinto bobo. Não pia, mas fala. Fala uma fala que parece espanhol e não é, e vai ser português depois que descobrir o Brasil.
Pinto-Calçudo é português de Portucália. Vem navegando em navio, vê terra, pisa na terra e toma a terra para ele e para el-rei. Pisa na floresta, tira madeira para fazer mesa e cadeira. Pinto-Calçudo anda depressa. Vai chegando, vai entrando, vai pisando, vai tomando tudo.
Pinto-Calçudo, cuidado! Não pisa no índio que índio não é cobra.
Pinto-Calçudo aponta arma para o céu. Faz fogo e fumaça. Pinto-Calçudo espantou o índio. Não sei se matou o passarinho. Só sei que espantou o índio. Índio correu e se escondeu atrás da serra das esmeraldas e atrás de outras serras do Brasil. Borborema. Grão-Mogol. Amantiquira. O índio correu e se escondeu atrás de todas as serras do Brasil. Antes de se esconder, ele gritou:
CARAMURU! CARAMURU! CARAMURU!
As serras e as florestas responderam:
MURU! MURU! MURU!
Pinto-Calçudo é Caramuru. É dono do trovão. Pinto-Calçudo assustou o índio. Pinto-Calçudo é perigoso. É dono do fogo, é dono da fumaça. Não adianta lutar com Caramuru. Deixa Pinto-Calçudo entrar e tomar tudo para ele e para el-rei.
Mas vamos começar esta história do seu começo mesmo, que começou assim:
Um dia, o rei dos pintos chamou o capitão-mor e falou para ele:
Pedro Álvares Cabral, está na hora de descobrir o Brasil. Amonta na caravela e vai!
Pedro Álvares então perguntou:
Vou per onde e adonde vou? Dom Manuel I aí explicou:
Tu sabes que o mundo é uma laranja?
Dizem que é – disse o outro.
Desde que a terra é laranja, deste lado está Portugal e deste outro lá, Brasil. E este caminho vai pera lá.
Como é que vou pera lá sem carta-mapa sem nada? – perguntou o capitão-mor.
Com agulha-astrolábio-vento e coragem é que se vai a lá.
Pois cá tenho tudo isso que trago da escola – respondeu Cabral, satisfeito.
Dom Manuel, então, disse mais:
Toma as caravelas, entra numa delas e vai. Mas não vades em terra de Castela que o papa dividiu o além em mais além e menos além. Traçou o traço das Tordesilhas. Além de lá é de Espanha. Aquém de cá pertence a Portugal.
Pinto-Calçudo não entendeu bem a fala do rei. Mas Dom Manuel mandou? Pinto obedece.
Aí fizeram uma missa. Pedro Álvares Cabral entrou na ermida e rezou junto. Depois subiu na torre de Belém e espiou o mar uma vez para ver a terra alaranjando longe. Traçou o sinal da cruz, desceu da torre e subiu na caravela dele. As outras vinham atrás.
Pinto-Calçudo é corajoso e teimoso. Não via nada no além onde a terra alaranja redonda. Mas ia navegando no mar que aparecia. Ia navegando e cantando:
Vou navegando neste mar peraqui perali pera ver adonde dá. Já dobraram Cabo-Não-Bojador-Tormentório-Adamastor-e-da-Boa-Esperança. Não carece ir pera lá. Vou mareando neste mar peraqui perali pera ver adonde dá.
Ninguém sabia que mar oceano era aquele. Se era mar maior ou menor. Só o vento é que sabia. Pedro Álvares Cabral já cansava de velejar e procurar o Brasil sem achar. Queria voltar e dizer a el-rei:
Não achei a boa terra.
Mas Pinto-Calçudo é teimoso. Seguiu navegando e cantando:
Vou navegando neste mar peraqui perali para ver adonde dá.
Até que um dia, de abril talvez, deste ano de 1500, Pinto-Calçudo viu passarinho voando no mar. Ele então falou, não com seus botões que não tinha, mas falou sozinho:
Passarinho voando é terra! Terra com passarinho só pode ser Brasil. Deixe ver nos meus óculos.
Pinto-Calçudo olhou por um óculo dentro de um canudo. Sorriu e depois gritou para os outros pintos que vinham com ele e atrás dele:
Lá está a boa terra! A Bahia! Estou vendo o Monte Pascoal no meu binóculo que é um óculo de uma lente só!
Todos os pintos quiseram ver a Bahia por um óculo de uma lente só e o primeiro que olhou foi Pero Vaz de Caminha.
Será que é terra ou ilha? – perguntou Pero.
Peragora será ilha e da Vera Cruz, que não vejo mais que uma ilha – disse Cabral, que era míope e via tudo longe e pequeno. Se não for ilha, se verá depois e será terra firme de Santa Cruz.
O capitão-mor botou a escadinha e desceu da sua caravela. Todos botaram sua escadinha e desceram atrás com ele. Carecia espiar a terra de perto a ver se era boa e cheirosa. Após, tomar posse e plantar bandeira com cruz.
Pedro Álvares Cabral fincou a bandeirinha del-rei. Depois fez um discurso:

Manos pintos! Não sei se cheguei primeiro ou se os outros chegaram adiante. Só sei é que hi cheguei e cá não avisto nem vejo Vespúcio, Colombo ou Pinzon mais os mais que vinieron antes, quais Hojeda e João da Coisa. Aqui planto a bandeirinha del-rei com cruz e tudo nesta ilha de Vera Cruz mais tarde chamada terra firme Santa Cruz, país de pau-brasil e tudo! Todos os pintos gritaram: Viva!; e assim que se fincou a bandeirinha, muitos pendões foram nascendo na ilha que alaranjava além longe, a norte-sul-oeste até o traço de Tordesilhas.

Pedro Álvares Cabral olhou a terra e exclamou:
Ô terra graciosa! Será que dá rosa-de-santa-maria?
Acho que não – falou Pero Vaz Caminha. – Só vejo é pé de manacá.
Os pintos então cantaram em coro com Cabral e Caminha:
Ô terra que terra! Que terra é esta que tem de tudo e que não tem nada? Ô terra que terra! Será paraíso?
A terra era muita coisa. Era índio-índio-índio. Passarinho-passarinho-passarinho de toda cor. Mosquito de todo jeito. Cobra-cobra-cobra e até cobra-de-vidro. Mato-mato-araçá-jabuticaba-jenipapo e goiaba. Peixe-no-rio mais peixe-no-rio. E muito cheiro de flor de manacá!
A terra era mesmo paraíso. Paraíso de índio paraíso de passarinho paraíso de onça mosquito muriçoca.
Ô terra rica-de-pena-e-bico e que não tem nada! Nem casa para pinto morar. Nem cama para pinto deitar. Nem doce para pinto comer. Só mato-mato-bicho-bicho-bicho-índio-índio-índio deitado na rede com pena na cabeça, botoque no nariz, arco-flecha na mão! índio comendo mandioca e farinha com peixe sem sal e bebendo cauim. Que coisa choca! Índio comendo mangaba-araçá-cagaita e goiaba.
Ô terra graciosa, Paraíso de índio! Que bom caçar! Que bom pescar, tomar banho no rio, comer jabuticaba e dormir de rede com pena na cabeça, pena na cintura!
Paraíso de índio é toda vida a mesma coisa. Enjoa!
Vamos acabar com paraíso de índio deitado na rede com pena na cabeça! – disse Pinto-Calçudo.
Pinto-Calçudo chegou de sapato. Pisou com força, fez tanto barulho que acordou o índio dormindo na rede. Tirou o índio da rede e deitou ele mesmo para ver se era bom.
Rede é bom! Sai índio! Me dá essa rede que eu quero me deitar e me balançar.
Quem é que me empurra e me toma a minha rede e o meu paraíso? – perguntou o índio.
Índio correu e se escondeu atrás da árvore e atrás da serra. Depois foi se queixar a Tupã, que era o deus dele.
Ô Tupã! Que índio é esse de corpo escondido e cara na sombra sem pena nem flecha? Que índio é esse que pisa que assusta passarinho? Que índio é esse de fogo e fumaça que grita e que fala o que não sei? Tupã! Isso não é índio. Tupã, que bicho é esse navegando na espuma?
Tupã não disse nada. Achou melhor não responder.
Tupã não responde? Vou-me embora desta praia. Vou tecer minha rede lá longe do mar. Vou para a ilha do Bananal. Quero ver quem vai lá.
O índio juntou rede-tapuirama-cabaça e cocar-mundéu-maracá-flecha-tacape e foi embora depressa. Mas teve índio que se escondeu atrás de murundu-de-cupim e espiou Pinto-Calçudo dando tiro em passarinho.
Já plantei minha bandeirinha – disse Cabral. – Posso dormir na rede. Vou dormir descansado. Mando alguém carreando carrinha a avisar a Dom Manuel que descobri a boa terra, a Bahia. Depois, daqui vou às Índias apanhar cravo e canela.
Pinto-Calçudo podia dormir de rede. Toda a terra que alaranja além-mar e aquém do traço de Tordesilhas, com tudo que tem dentro e sobre – pedrinha-borboleta-mosquito-periquito-passarinho-voando – ficou sendo de Dom Manuel agora Venturoso. Cabral dormiu descansado e depois escreveu a el-rei uma cartinha contando tudo da boa terra. Junto à carta enviou de presente e lembrança para Dom Manuel um navio cheio de passarinho-borboleta-flor-de-maracujá e tudo e um pé de manacá.
Dom Manuel ficou muito venturoso. Deu três pulos de alegria e gritou:
Viva o Brasil – Vera Cruz – Santa Cruz! Viva o país do pau-brasil!
Todos os pintos daquém e dalém responderam:
VIVA!
E lá vai a barquinha carregada de pau-brasil-papagaio-borboleta-passarinho-maracujá e flor-de-manacá.

Vírgínia Valli, in Antologia de histórias

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