Pinto-Calçudo não é pinto-pinto. É
português calçado de sapato, chapéu na cabeça e mosquete na mão.
Sapato serve para esconder o pé, chapéu para fazer sombra na cara e
mosquete serve para fazer fogo e fumaça. Serve até para matar
passarinho, para matar onça e, quem sabe, será? Para matar índio
também.
Pinto-Calçudo não é pinto bobo. Não
pia, mas fala. Fala uma fala que parece espanhol e não é, e vai ser
português depois que descobrir o Brasil.
Pinto-Calçudo é português de
Portucália. Vem navegando em navio, vê terra, pisa na terra e toma
a terra para ele e para el-rei. Pisa na floresta, tira madeira para
fazer mesa e cadeira. Pinto-Calçudo anda depressa. Vai chegando, vai
entrando, vai pisando, vai tomando tudo.
Pinto-Calçudo, cuidado! Não pisa no
índio que índio não é cobra.
Pinto-Calçudo aponta arma para o céu.
Faz fogo e fumaça. Pinto-Calçudo espantou o índio. Não sei se
matou o passarinho. Só sei que espantou o índio. Índio correu e se
escondeu atrás da serra das esmeraldas e atrás de outras serras do
Brasil. Borborema. Grão-Mogol. Amantiquira. O índio correu e se
escondeu atrás de todas as serras do Brasil. Antes de se esconder,
ele gritou:
– CARAMURU! CARAMURU! CARAMURU!
As serras e as florestas responderam:
– MURU! MURU! MURU!
Pinto-Calçudo é Caramuru. É dono do
trovão. Pinto-Calçudo assustou o índio. Pinto-Calçudo é
perigoso. É dono do fogo, é dono da fumaça. Não adianta lutar com
Caramuru. Deixa Pinto-Calçudo entrar e tomar tudo para ele e para
el-rei.
Mas vamos começar esta história do seu
começo mesmo, que começou assim:
Um dia, o rei dos pintos chamou o
capitão-mor e falou para ele:
– Pedro Álvares Cabral, está na hora
de descobrir o Brasil. Amonta na caravela e vai!
Pedro Álvares então perguntou:
– Vou per onde e adonde vou? Dom Manuel
I aí explicou:
– Tu sabes que o mundo é uma laranja?
– Dizem que é – disse o outro.
– Desde que a terra é laranja, deste
lado está Portugal e deste outro lá, Brasil. E este caminho vai
pera lá.
– Como é que vou pera lá sem
carta-mapa sem nada? – perguntou o capitão-mor.
– Com agulha-astrolábio-vento e
coragem é que se vai a lá.
– Pois cá tenho tudo isso que trago da
escola – respondeu Cabral, satisfeito.
Dom Manuel, então, disse mais:
– Toma as caravelas, entra numa delas e
vai. Mas não vades em terra de Castela que o papa dividiu o além em
mais além e menos além. Traçou o traço das Tordesilhas. Além de
lá é de Espanha. Aquém de cá pertence a Portugal.
Pinto-Calçudo não entendeu bem a fala
do rei. Mas Dom Manuel mandou? Pinto obedece.
Aí fizeram uma missa. Pedro Álvares
Cabral entrou na ermida e rezou junto. Depois subiu na torre de Belém
e espiou o mar uma vez para ver a terra alaranjando longe. Traçou o
sinal da cruz, desceu da torre e subiu na caravela dele. As outras
vinham atrás.
Pinto-Calçudo é corajoso e teimoso. Não
via nada no além onde a terra alaranja redonda. Mas ia navegando no
mar que aparecia. Ia navegando e cantando:
– Vou navegando neste mar peraqui
perali pera ver adonde dá. Já dobraram
Cabo-Não-Bojador-Tormentório-Adamastor-e-da-Boa-Esperança. Não
carece ir pera lá. Vou mareando neste mar peraqui perali pera ver
adonde dá.
Ninguém sabia que mar oceano era aquele.
Se era mar maior ou menor. Só o vento é que sabia. Pedro Álvares
Cabral já cansava de velejar e procurar o Brasil sem achar. Queria
voltar e dizer a el-rei:
– Não achei a boa terra.
Mas Pinto-Calçudo é teimoso. Seguiu
navegando e cantando:
– Vou navegando neste mar peraqui
perali para ver adonde dá.
Até que um dia, de abril talvez, deste
ano de 1500, Pinto-Calçudo viu passarinho voando no mar. Ele então
falou, não com seus botões que não tinha, mas falou sozinho:
– Passarinho voando é terra! Terra com
passarinho só pode ser Brasil. Deixe ver nos meus óculos.
Pinto-Calçudo olhou por um óculo dentro
de um canudo. Sorriu e depois gritou para os outros pintos que vinham
com ele e atrás dele:
– Lá está a boa terra! A Bahia! Estou
vendo o Monte Pascoal no meu binóculo que é um óculo de uma lente
só!
Todos os pintos quiseram ver a Bahia por
um óculo de uma lente só e o primeiro que olhou foi Pero Vaz de
Caminha.
– Será que é terra ou ilha? –
perguntou Pero.
– Peragora será ilha e da Vera Cruz,
que não vejo mais que uma ilha – disse Cabral, que era míope e
via tudo longe e pequeno. Se não for ilha, se verá depois e será
terra firme de Santa Cruz.
O capitão-mor botou a escadinha e desceu
da sua caravela. Todos botaram sua escadinha e desceram atrás com
ele. Carecia espiar a terra de perto a ver se era boa e cheirosa.
Após, tomar posse e plantar bandeira com cruz.
Pedro Álvares Cabral fincou a
bandeirinha del-rei. Depois fez um discurso:
Manos pintos! Não sei se cheguei
primeiro ou se os outros chegaram adiante. Só sei é que hi cheguei
e cá não avisto nem vejo Vespúcio, Colombo ou Pinzon mais os mais
que vinieron antes, quais Hojeda e João da Coisa. Aqui planto a
bandeirinha del-rei com cruz e tudo nesta ilha de Vera Cruz mais
tarde chamada terra firme Santa Cruz, país de pau-brasil e tudo!
Todos os pintos gritaram: Viva!; e assim que se fincou a bandeirinha,
muitos pendões foram nascendo na ilha que alaranjava além longe, a
norte-sul-oeste até o traço de Tordesilhas.
Pedro Álvares Cabral olhou a terra e
exclamou:
– Ô terra graciosa! Será que dá
rosa-de-santa-maria?
– Acho que não – falou Pero Vaz
Caminha. – Só vejo é pé de manacá.
Os pintos então cantaram em coro com
Cabral e Caminha:
– Ô terra que terra! Que terra é esta
que tem de tudo e que não tem nada? Ô terra que terra! Será
paraíso?
A terra era muita coisa. Era
índio-índio-índio. Passarinho-passarinho-passarinho de toda cor.
Mosquito de todo jeito. Cobra-cobra-cobra e até cobra-de-vidro.
Mato-mato-araçá-jabuticaba-jenipapo e goiaba. Peixe-no-rio mais
peixe-no-rio. E muito cheiro de flor de manacá!
A terra era mesmo paraíso. Paraíso de
índio paraíso de passarinho paraíso de onça mosquito muriçoca.
Ô terra rica-de-pena-e-bico e que não
tem nada! Nem casa para pinto morar. Nem cama para pinto deitar. Nem
doce para pinto comer. Só
mato-mato-bicho-bicho-bicho-índio-índio-índio deitado na rede com
pena na cabeça, botoque no nariz, arco-flecha na mão! índio
comendo mandioca e farinha com peixe sem sal e bebendo cauim. Que
coisa choca! Índio comendo mangaba-araçá-cagaita e goiaba.
Ô terra graciosa, Paraíso de índio!
Que bom caçar! Que bom pescar, tomar banho no rio, comer jabuticaba
e dormir de rede com pena na cabeça, pena na cintura!
Paraíso de índio é toda vida a mesma
coisa. Enjoa!
– Vamos acabar com paraíso de índio
deitado na rede com pena na cabeça! – disse Pinto-Calçudo.
Pinto-Calçudo chegou de sapato. Pisou
com força, fez tanto barulho que acordou o índio dormindo na rede.
Tirou o índio da rede e deitou ele mesmo para ver se era bom.
– Rede é bom! Sai índio! Me dá essa
rede que eu quero me deitar e me balançar.
– Quem é que me empurra e me toma a
minha rede e o meu paraíso? – perguntou o índio.
Índio correu e se escondeu atrás da
árvore e atrás da serra. Depois foi se queixar a Tupã, que era o
deus dele.
– Ô Tupã! Que índio é esse de corpo
escondido e cara na sombra sem pena nem flecha? Que índio é esse
que pisa que assusta passarinho? Que índio é esse de fogo e fumaça
que grita e que fala o que não sei? Tupã! Isso não é índio.
Tupã, que bicho é esse navegando na espuma?
Tupã não disse nada. Achou melhor não
responder.
– Tupã não responde? Vou-me embora
desta praia. Vou tecer minha rede lá longe do mar. Vou para a ilha
do Bananal. Quero ver quem vai lá.
O índio juntou rede-tapuirama-cabaça e
cocar-mundéu-maracá-flecha-tacape e foi embora depressa. Mas teve
índio que se escondeu atrás de murundu-de-cupim e espiou
Pinto-Calçudo dando tiro em passarinho.
– Já plantei minha bandeirinha –
disse Cabral. – Posso dormir na rede. Vou dormir descansado. Mando
alguém carreando carrinha a avisar a Dom Manuel que descobri a boa
terra, a Bahia. Depois, daqui vou às Índias apanhar cravo e canela.
Pinto-Calçudo podia dormir de rede. Toda
a terra que alaranja além-mar e aquém do traço de Tordesilhas, com
tudo que tem dentro e sobre –
pedrinha-borboleta-mosquito-periquito-passarinho-voando – ficou
sendo de Dom Manuel agora Venturoso. Cabral dormiu descansado e
depois escreveu a el-rei uma cartinha contando tudo da boa terra.
Junto à carta enviou de presente e lembrança para Dom Manuel um
navio cheio de passarinho-borboleta-flor-de-maracujá e tudo e um pé
de manacá.
Dom Manuel ficou muito venturoso. Deu
três pulos de alegria e gritou:
– Viva o Brasil – Vera Cruz – Santa
Cruz! Viva o país do pau-brasil!
Todos os pintos daquém e dalém
responderam:
– VIVA!
E lá vai a barquinha carregada de
pau-brasil-papagaio-borboleta-passarinho-maracujá e flor-de-manacá.
Vírgínia Valli, in Antologia de histórias
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