quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Iemanjá, dona dos mares e dos saveiros / Tempestade

          A noite se antecipou. Os homens ainda não a esperavam quando ela desabou sobre a cidade em nuvens carregadas. Ainda não estavam acesas as luzes do cais, no Farol das Estrelas não brilhavam ainda as lâmpadas pobres que iluminavam os copos de cachaça, muitos saveiros ainda cortavam as águas do mar quando o vento trouxe a noite de nuvens pretas.
Os homens se olharam e como quê se interrogavam. Fitavam o azul do oceano a perguntar donde vinha aquela noite adiantada no tempo. Não era a hora ainda. No entanto, ela vinha carregada de nuvens, precedida do vento frio do crepúsculo, embaciando o Sol, com o num milagre terrível.
A noite veio, nesse dia, sem música que a saudasse. Não ecoara pela cidade a voz clara dos sinos do fim da tarde. Nenhum negro aparecera ainda de violão na areia do cais. Nenhuma harmônica saudava a noite da proa de um saveiro. Não rolara sequer pelas ladeiras o baticum monótono dos candomblés e macumbas. Porque então a noite já chegara sem esperar a música, sem esperar o aviso dos sino s, a cadência das violas e harmônicas, o misterioso bater dos instrumentos religiosos? Porque viera assim antes da hora, fora do tempo?
Aquela era uma noite diferente e angustiante. Sim, porque os homens tinham um ar de desassossego e o marinheiro que bebia solitário no Farol das Estrelas correu para o seu navio como se o fosse salvar de um desastre irremediável. E a mulher, que no pequeno cais do mercado esperava o saveiro onde vinha o seu amor, começou a tremer, não do frio do vento, não do frio da chuva, mas de um frio que vinha do coração amante cheio de maus presságios da noite que se estendia repentinamente.
Porque eles, o marinheiro e a mulher morena, eram familiares do mar e bem sabiam que se a noite chegara antes da hora, muitos homens morreriam no mar, navios não terminariam a sua rota, mulheres viúvas chorariam sobre a cabeça dos filhos pequeninos. Porque — eles sabiam – não era a verdadeira noite, a noite da lua e das estrelas, da música e do amor, que chegara. Esta só chegava na sua hora, quando os sinos tocavam e um negro cantava ao violão, no cais, um a cantiga de saudade. A que chegara carregada de nuvens, trazida pelo vento, fora a tempestade que derrubava os navios e matava os homens. A tempestade é a falsa noite.
A chuva vei o com fúria e lavou o cais, amassou a areia, balançou os navios atracados, revoltou os elementos, fez com que fugissem todos aqueles que esperavam a chegada do transatlântico. Um homem na estiva disse ao companheiro que ia haver tempestade. Como um monstro estranho um guindaste atravessou a chuva e o vento, carregando fardos. A chuva açoitava sem piedade os homens negros da estiva. 0 vento passava veloz, assoviando, derrubando coisas, amedrontando as mulheres. A chuva em baciava tudo, fechava até os olhos dos homens. Só os guindastes se moviam negros. Um saveiro virou no mar e dois homens caíram n’água. Um era jovem e forte. Talvez tivesse murmurado um nome naquela hora final. Não era um a praga, com certeza, porque soava docemente na tempestade.
O vento arrancou a vela do saveiro e levou-a para o cais como uma notícia trágica. 0 bojo das águas se elevou, as ondas bateram nas pedras do cais. As canoas no porto da Lenha se agitavam e os canoeiros resolveram não voltar naquela noite para as cidadezinhas do Recôncavo. A vela do saveiro naufragado caiu no quebra-mar e então se apagaram as lanternas de todos os saveiros, mulheres rezaram a oração d os defuntos, os olhos dos homens se estenderam para o mar.
Diante do copo de cachaça o preto Rufino não sorriu mais. Assim com a tempestade, Esmeralda não viria.
As luzes se acenderam, mas estavam fracas e oscilavam. Os homens que esperavam o transatlântico não viam nada. Eles haviam entrado para os armazéns e mal enxergavam o vulto dos guindastes e o vulto dos carregadores que, curvados, atravessavam a chuva. Mas não viam o navio esperado onde viriam amigos, pais e irmãos, noivas talvez. Não viam o homem que chorava na 3ª classe. Pela face do homem que vinha pela estrada do mar, na 3ª classe de um tigre que tocara em vinte portos diversos, a chuva se misturava com as lágrimas, a lembrança das lamparinas da sua aldeia se confundia com as luzes embaciadas da cidade tempestuosa.
Mestre Manuel, o marinhe iro que mais conhecia aqueles m ares, resolveu não sair com seu saveiro naquela noite. 0 amor é bom nas noites de temporal e a carne de Maria Clara tinha gosto de mar.
As luzes do velho forte estavam apagadas. Também as lanternas dos saveiros. Foi quando faltou luz na cidade. Até os guindastes pararam e os homens da estiva entraram para os armazéns. Guma, do seu saveiro, que era o Valente, viu as luzes se apagarem e teve medo. Ia com a mão no leme, o barco virado de um lado. Aqueles que esperavam o transatlântico se foram em automóveis para lugares mais movimentados. Só ficou um homem que apertou a mão de outro quando ele desceu do transatlântico: — Tudo bem?
Tudo — sorriu o outro.
O que estava aguardando chamou um automóvel e os dois seguiram silenciosos. Os companheiros já estariam esperando.
O homem que chegara na 3ª classe ficou olhando a cidade de costumes diversos, d e língua diversa. Apertou contra o peito a carteira quase vazia e se atirou pela primeira ladeira que encontrou com o seu saco de viagem. 0 cais se despovoou.
Só Lívia, magra, de cabelos finos colados ao rosto pela chuva, ficou diante do cai s dos saveiros olhando o mar. Ouvia os gemidos de amor de Maria Clara. Mas seus pensamentos e seus olhos estavam no mar. 0 vento a sacudia como se ela fosse um caniço, a chuva a chicoteava no rosto, nas pernas e nas mãos. Mas ela continuava imóvel, o corpo atirado para a frente, os olhos na escuridão, esperando ver a lanterna vermelha do Valente cruzar a tempestade, iluminando a noite sem estrelas, anunciando a chegada de Guma.

Jorge Amado, in Mar Morto

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