O foguetório vinha lá das bandas do rio
Grande. Ninguém ouviu. Só ela, a dona Sophia. Ninguém ouviu porque
quase não se ouvia, de tão longe. Ela ouviu porque desde muito cedo
pusera atenção nos seus ouvidos. Fora ela que contratara o
fogueteiro com ordens expressas de não economizar. Por isso, porque
seus ouvidos estavam à espera, ela foi a única a ouvir. Mas logo
todos ouviriam. Ela sorriu de felicidade.
Naqueles tempos os fogueteiros eram
profissionais importantes. Eram listados nos almanaques ao lado dos
notáveis da cidade. Sua importância se deve ao fato de serem
arautos.
A importância dos arautos vem de longa
data. Os reis se valiam deles para informar o povo de suas decisões.
Tocavam-se os clarins na praça da vila e todo mundo corria: havia
novidades. Os arautos das novidades nas cidadezinhas de Minas eram de
três tipos. Primeiro havia os arautos vindos de lugares distantes
conduzindo tropas de burros carregados com mercadorias das cidades
grandes. Eram os mascates sírios e libaneses. O povo os chamava de
“turcos”, o que os deixava muito bravos. Onde já se viu
confundir sírios e libaneses com turcos? O povo não sabe geografia?
Sobre eles falaremos mais tarde por haver suspeitas de que eu tenha
sangue sírio-libanês correndo nas minhas veias. Depois vinham os
arautos do lugar. Os primeiros eram os sineiros, geralmente um
sacristão ou coroinha, que puxava a corda e fazia os sinos tocarem,
à semelhança do corcunda de Notre Dame. Tocar os sinos era uma
arte. Isso porque havia coisas alegres e coisas tristes a serem
anunciadas. Por isso os toques tinham de ser diferentes. Havia toques
alegres e toques fúnebres. Todo mundo conhecia a diferença. Quando
se tratava de coisas alegres os sineiros não poupavam os sinos. Era
uma farra. Um exemplo clássico dessa função alegre dos sinos se
encontra ao final da Abertura 1912, de Tchaikovski, que foi
composta para celebrar a vitória dos exércitos russos sobre as
tropas de Napoleão. A Abertura termina com uma explosão
triunfal de tiros de artilharia e o repicar descontrolado, bêbado,
dos carrilhões. Nas cidades pequenas não havia eventos portentosos
assim para serem celebrados, mas havia as missas, os casamentos, os
batizados.
Mas os mesmos sinos se prestavam também
para anunciar a morte. Aí o seu repicar ficava triste, vagaroso,
lúgubre, choroso. Quando o toque fúnebre era ouvido todos se
persignavam e perguntavam: “Quem terá morrido?”. Meu pai, já
velho, já estando remando no grande rio, voltou ao mundo da sua
infância. Acho que a “terceira margem do rio” é a infância...
Abriu um guarda-roupa e pôs-se a procurar alguma coisa. Perguntei:
“O que é que o senhor está procurando, papai?”. Eu sempre o
tratei por “senhor”. Ele me olhou com olhos enormes, olhos de um
outro mundo e respondeu: “Procuro meu terno preto”. Mas não
havia razões para um terno preto nem ele tinha terno preto. “Mas
para que o senhor quer vestir um terno preto?”, perguntei. Ele me
olhou e disse: “Você não está ouvindo o repicar fúnebre dos
sinos?”. Estremeci. Não havia sinos repicando. Os sinos fúnebres
repicavam dentro da alma dele. A alma sabia que a hora estava
chegando.
Mas os fogueteiros eram arautos só de
alegria. Foguete estourou, coisa feliz estava acontecendo. Fogueteiro
não era chamado para anunciar velório. Só pra anunciar a
felicidade. Quem ganhava na loteria chamava o fogueteiro. Quando o
time do lugar ganhava, mais foguetório. Meu pai uma vez contratou um
foguetório para celebrar ter ganho uma demanda com a prefeitura. Ele
havia sido multado por excesso de velocidade. Isso em 1925, numa
cidade que só tinha ruas de terra...
Pois fora a dona Sophia que encomendara o
foguetório. Para celebrar. Para anunciar para a cidade inteira que o
seu sonho estava se realizando.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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