― Miguilim, você sabe o que o vaqueiro
Salúz disse? Tio Terêz foi morar no Tabuleiro Branco. O vaqueiro
Salúz vai levar lá o cavalo dele e o resto das coisas que ainda
ficaram. Tio Terêz decerto que quer trabalhar p'ra Sa Cefisa, no
Tabuleiro Branco...
― Por que, Dito? P’ra sempre?
― Acho que ele tomou medo de Pai, não
quer ser mais parente de nossa casa. O Tabuleiro Branco é longe,
mais de dez léguas daqui, p’ra outra banda de lá. Vaqueiro Salúz
disse que até assim é bom, tio Terêz acaba casando com a Sa
Cefisa, que ela é mulher enviuvada...
― Miguilim!...
A Chica gritava dessa forma, feito ela
fosse dona dele.
― ... Miguilim, vem depressa, Mamãe,
Papai tá te chamando!
Seo Deográcias vai te olhar... Seo
Deográcias ria com os dentes desarranjados de fechados, pare careta
cã, e sujo amarelal brotava por toda a cara dele, um espim de uma
barba. ― “A-há, seu Miguilim, hum... Chega aqui.” Tirava a
camisinha. “Ahã... Ahã... Está se vendo, o estado deste menino
não é p’ra nada-não senhor, a gente pode se guiar quantas
costelinhas Deus deu a ele... Rumo que meu, eu digo: cautelas!
Ignorância de curandeiro é que mata, seo Nhô Berno. Um que desvê,
descuidou, há-de-o! ― entrou nele a febre. E, que digo: p’ra
passar a héctico é só facilitar de beirinha, o caso aí maleja...
Muito menino de desacude é assim. Mas, tem susto não: com as ervas
que sei, vai ser em pé um pau, garantia que dou, boto bom!...”
― “Meu filhinho, Miguilim...” ― a
mãe desnorteava, puxando-o para si. ― “De remédio é que ele
carece, momo não cura ninguém!” ― o pai desdenhava grosso.
― “Isto mesmo, seo Nhô Berno, bem
deduzido!” ― seo Deográcias pronunciava. Bebia café. ―
Remédio: e ― o senhor agradeça, eu esteja vindo viver aqui nestas
más brenhas, donde só se vê falta tudo, muita míngua, ninguém
não olha p’ra este sertão dos pobres...
Seo Deográcias ficava brabo: agora
estava falando da falta de providências para se pegar criminosos tão
brutos, feito esse Brasilino Boca-de-Bagre, que cercava as pessoas
nas estradas, roubava de tudo, até tinha aparecido na Vereda do
Terentém, fazedor de medo, deram em mão o que quis, conduziu a
mulher do Zé Ijim, emprestada por três dias, devolveu dali a quase
mês! Seo Deográcias cuspia longe, em tris, asseava a boca com as
costas da mão, e rexingava: — “Assim mais do que assim, as
coisas podem demasiar. Por causa e umas e dessas, eu vou no papel! ―
vou tinta!” Dizia que estava escrevendo carta para o Presidente, já
tinha escrito outra vez, por conta de tropeiros do Urucuia-a-fora não
terem auxiliado de abrir a tuta-méia de um saquinho de sal, nem de
vender para os dali quando sal nenhum para se pôr em comida da gente
não se achava.
Ao já estava com a carta quase pronta,
só faltando era ter um positivo que a fosse levar na barra, na Vila
Risonha.
― “Bem, eu agora vou-me-vou, estou de
passar na cafúa do Frieza, pastos abaixo. Viajar é penoso! Olha, o
corguinho já está alargado, com suas águas amarelas...” ― Seo
Deográcias só gostava de ir visitar os outros era no intervalinho
de chuvas, aí ele sabia certo que achava todos em casas. Ele tinha
também ofício de cobrar dinheiro, de uns para os outros. Levantou,
foi na janela, espiar o céu do tempo. ― “Eh, água vai tornar a
revirar água? No melhor, estia: vigiem o olho-de-boi!” Todos
discorriam para ir ver, até Vovó Izidra concordava de apreciar o
olho-de-boi, que era só um reduzidinho retalho de arco-da-velha,
leviano airoso. Miguilim, não, hoje não podia. Esperava abraçado
no colo da mãe, enquanto que ela quisesse assim. ― “Que é que
você está soletrando, Miguilim?” ― “Nada, não, estava
falando nada. Estava rezando, endereçado baixinho, para Deus
dificultar dele morrer.”
Guimarães Rosa, in Manuelzão e Miguilim
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