O Grande Colisor de Hádrons
1.
Quando o scanner do tempo foi instalado
em Genebra, em meio à euforia geral, especulou-se se acaso ele
também não poderia mostrar o futuro. Bem, só mesmo leigos para ter
ideias tão ingênuas. Afinal, como o pleroma poderia conhecer algo
que ainda não foi criado? Saber algo sobre o futuro é tão difícil
como escapulir para fora do Universo. O Universo está em expansão,
assim como o tempo. Um condiciona o outro.
Todavia, podemos apontar para o fato de
que o futuro não é mais o que era antigamente. Na verdade, a
história teve seu fim no ano 2170. Desde meados do século XXII não
aconteceu mais nada importante. Nenhum dos códigos vai além desse
momento. E por quê?
É claro que continuaram a nascer novas
pessoas, e que se continuou a comer, fazer a digestão, sentar diante
da tela e assistir à história. Mas somente daí não surge uma nova
história. Por isso, sempre se volta a reivindicar que a contagem do
tempo seja abolida. Hoje em dia, tanto faz se contarmos os anos ou as
contas do rosário, nenhum dos dois tem mais sentido.
Com o scanner do tempo, a história
chegou a um fim. E talvez também se possa dizer o mesmo da vida. O
mundo gira em falso. As pessoas grudam na cadeira e colhem a nata da
história.
2.
Esse “dilema cultural” foi esboçado
pela primeira vez por Nietzsche em seu ensaio “Da utilidade e da
desvantagem da história para a vida” (1874, código “História
da filosofia”, verbete 2916). Mais tarde Nietzsche deu a esse
ensaio o título mais incisivo de “A doença histórica”, cf.
verbete 2968). No prefácio, Nietzsche cita um depoimento de Goethe,
no qual ele afirma abominar “tudo o que apenas me ensina sem
ampliar minha atividade ou vivificá-la diretamente”. Nietzsche
acrescenta que “todos nós sofremos de uma dilacerante febre
histórica”.
Nietzsche, portanto, já reconhecia que a
história pode representar uma ameaça à vida vivida. Em sua
opinião, existe um “grau de insônia, de ruminação, de sentido
histórico, que se dá em prejuízo do vivente e que ao final o leva
à ruína, seja ele um homem ou um povo ou uma cultura”. Um excesso
de história leva a que ao final a vida se corrompa e degenere, e
nesse processo também a história acaba por se corromper.
Nietzsche queria combater o hegelianismo.
Mas suas palavras, como crítica cultural, são bem mais atuais hoje
do que em sua época. Hoje nos falta o que Nietzsche chamou de “força
plástica de um indivíduo, um povo, uma cultura”.
A vida precisa de esquecimento. A
saúde do homem depende de sua capacidade de esquecer. De cada ação
e de cada momento de felicidade também faz parte o esquecimento. O
conhecimento nunca deve se sobrepor à vida.
Há um trecho em que Nietzsche compara
uma pessoa empanturrada de história a uma cobra que engoliu uma
lebre e depois fica cochilando ao sol, sem conseguir se mexer.
O homem moderno, segundo Nietzsche, sofre
de um enfraquecimento da personalidade. Ele se tornou um espectador
lascivo e errante.
Nietzsche reporta-se a Hesíodo (700 a.C,
“História da filosofia”, verbete 0017), que acreditava que a
Idade de Ouro da humanidade já havia passado. Os homens estariam se
tornando cada vez mais fracos. E um dia viriam ao mundo com cabelos
brancos. Segundo Hesíodo, nesse momento Zeus extinguiria a
humanidade.
Nietzsche via a “cultura histórica”
como uma espécie de encanecimento inato. Para ele, damos a impressão
de que a humanidade é velha e sua ocupação é a mesma dos anciãos:
a retrospectiva. Seríamos, por assim dizer, “seres ociosos e
mimados no jardim do saber”.
Podemos afirmar em sã consciência que
nesse sentido o velho carrancudo foi quase um vidente. Desde sua
época, muita coisa mudou. Nietzsche não viveu o desenvolvimento da
tecnologia da comunicação que esbocei aqui, pois morreu em 1900, o
ano em que tudo começou. Contudo, ele pressentiu o que iria
acontecer.
No século XIX, ainda era comum fazer
alguma coisa. Alguns poucos — devido a Nietzsche cada vez mais —
subiram às tribunas desde então. Mas a maioria trabalhava. Hoje
toda a humanidade está nas arquibancadas. Todos somos espectadores.
E nem mais saímos para dar uma volta. Para nos deslocarmos, não
precisamos nos movimentar fisicamente. E o que observamos não é o
nosso presente. O que se passa nas telas de nossas casas aconteceu há
milhares de anos lá fora sob o céu aberto.
3.
Foi a visão de Hegel do Espírito
Absoluto que apontou para o futuro. O que Zaratustra temia aconteceu:
Apoio venceu Dioniso, e hoje temos que ir a um antiquário se
quisermos comprar gaze e esparadrapo.
Para Hegel, a história da humanidade era
um processo no qual o espírito do mundo despertava para a
consciência de si mesmo. Houve um tempo em que o espírito era uno e
indivisível. O objetivo da história, porém, é o retorno do
espírito a si mesmo.
Na verdade, esse retorno pode ser datado
em 2120, o ano em que o scanner do tempo foi instalado. Hegel não
caberia em si de alegria.
Jostein Gaarder, in O Pássaro Raro
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