sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Natureza-morta

           Babette chegara exaurida e com olhar esgazeado, como um animal sendo caçado, mas, em seu novo ambiente de cordialidade, logo adquiriu a aparência de uma criada confiável e respeitável. Antes, parecera uma mendiga; agora, mostrava-se uma conquistadora. As feições serenas e o olhar firme e profundo tinham qualidades magnéticas; sob seus olhos, as coisas se moviam, sem fazer ruído, para o lugar apropriado.
As donas da casa, no início, estremeceram levemente, tal como o deão, no passado, ante a ideia de acolher uma papista sob seu teto. Mas não lhes agradava aborrecer sua semelhante, uma criatura que passara por tão duras provações, com catequizações; tampouco estavam muito seguras do próprio francês. Tacitamente concordaram que o exemplo de uma boa vida luterana seria o melhor meio de converter a criada. Desse modo, a presença de Babette na casa tornou-se, por assim dizer, um aguilhão moral para suas moradoras.
Desconfiaram da afirmativa de Monsieur Papin de que Babette podia cozinhar. Na França, elas sabiam, as pessoas comiam rãs. Mostraram a Babette como preparar o bacalhau seco e uma sopa de cerveja com pão; durante a demonstração, o rosto da francesa ficou absolutamente impassível. Mas em uma semana Babette preparava bacalhau seco e sopa de cerveja com pão tão bem quanto qualquer um nascido e criado em Berlevaag.
A ideia do luxo e da extravagância dos franceses foi o ponto seguinte a causar alarme e apreensão às filhas do deão. No primeiro dia em que Babette ficou a seu serviço, chamaram-na e explicaram-lhe que eram pobres e que, para elas, comidas sofisticadas eram pecado. A alimentação delas tinha de ser o mais simples possível; eram os panelões de sopa e cestas para os pobres que importavam. Babette balançou a cabeça; quando menina, informou às senhoras, fora cozinheira de um velho padre que era um santo. Ao ouvir isso, as irmãs resolveram suplantar o padre francês em ascetismo. E logo descobriram que, a partir do dia em que Babette encarregou-se da administração da casa, seus gastos foram milagrosamente reduzidos e as panelas de sopa e cestas adquiriram um poder novo e misterioso de estimular e fortalecer os pobres e enfermos.
O mundo do lado de fora da casa amarela também tomou conhecimento dos dotes de Babette. A refugiada jamais aprendeu a falar a língua de seu novo país, mas com seu norueguês estropiado pechinchava preços com os mais empedernidos comerciantes de Berlevaag. Era tida com admiração no cais e na praça do mercado.
Os velhos irmãos e irmãs, que de início olharam com desconfiança para a estrangeira em seu meio, perceberam a feliz mudança na vida das irmãzinhas e rejubilaram-se com isso e disso tiraram proveito. Descobriram que os problemas e preocupações haviam desaparecido como que por encanto da existência delas e que agora tinham dinheiro para dar, tempo para as queixas e confidências dos velhos amigos e paz para meditar sobre assuntos celestiais. Com o correr do tempo, não foram poucos os irmãos e irmãs que incluíram o nome de Babette em suas orações, agradecendo a Deus pela silenciosa estrangeira, a trigueira Marta na casa das duas claras Marias. A pedra que os construtores quase recusaram tornara-se a pedra angular.
As senhoras da casa amarela eram as únicas a saber que sua pedra fundamental apresentava uma característica misteriosa e alarmante, como que de certo modo relacionada à pedra preta de Meca, à própria Caaba.
Dificilmente Babette fazia referência à sua vida pregressa. Quando, nos primeiros dias, as irmãs gentilmente prestaram-lhe as condolências por suas perdas, tiveram contato com aquela grandeza e estoicismo sobre os quais Monsieur Papin havia escrito. “O que as senhoras queriam?”, respondera, dando de ombros. “É o destino.”
Mas um dia, inesperadamente, informou-as que por muitos anos tivera um bilhete da loteria francesa e que um amigo fiel em Paris continuava a renová-lo para ela todos os anos. Uma hora, podia ganhar o grand prix de dez mil francos. Ao ouvir isso, sentiram que a velha bolsa de tapete de sua cozinheira era feita de um tapete mágico; num dado momento, ela poderia montá-la e ser levada para longe, de volta a Paris.
E acontecia de Martine ou Philippa falarem com Babette e não obterem resposta e ficarem se perguntando se ao menos ela ouvira o que haviam dito. Encontravam-na na cozinha, os cotovelos fincados na mesa e as têmporas nas mãos, perdida no estudo de um pesado livro negro que secretamente suspeitavam ser um livro de orações papista. Ou então ela se sentava imóvel na cadeira de três pernas da cozinha, com as fortes mãos no colo e os olhos escuros bem abertos, tão enigmática e fatal quanto uma pitonisa em sua trípode. Em momentos como esses, percebiam que Babette era profunda e que no abismo de seu ser havia paixões, havia lembranças e desejos sobre os quais nada sabiam.
Um pequeno calafrio percorreu-as e bem lá no fundo pensaram: “Quem sabe afinal de contas não tenha sido de fato uma pétroleuse”.

Karen Blixen, in A festa de Babette

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