domingo, 18 de outubro de 2020

Manhã saudável

          Toda noite, depois que ela o deixou, ele adormecia em um local diferente: no sofá, em uma poltrona na sala, no capacho da varanda como um sem-teto. Todas as manhãs, ele fazia questão de sair para o café. Mesmo prisioneiros têm o direito de fazer uma caminhada diária no pátio da prisão. No café, sempre lhe reservavam uma mesa para dois, com uma cadeira vazia diante dele. Sempre. Mesmo quando o garçom lhe perguntava especificamente se ele estava sozinho. Outras pessoas sentavam-se lá em duplas ou em trios, riam, comiam um do prato do outro, brigavam sobre quem iria pagar a conta, mas Miron ficava sentado sozinho com o seu “Manhã Saudável”, que incluía um copo de suco de laranja, uma tigela de cereais com mel, um café expresso duplo descafeinado, acompanhado de leite quente com baixo teor de gordura. Claro que seria melhor se alguém sentasse na sua frente e risse com ele, se houvesse alguém que discutisse sobre quem iria pagar a conta e ele tivesse que brigar para entregar o dinheiro à garçonete, dizendo: “Não pegue dele! Deixe, Ivri. Hoje é a minha vez.” Mas ele não tem com quem fazer isto, e o café da manhã sozinho era cem vezes melhor do que ficar em casa.
Miron perdia muito tempo observando as outras mesas. Escutava um pouco as conversas, lia o suplemento de esportes ou examinava com interesse distante os altos e baixos das ações israelenses em Wall Street. Às vezes, alguém se aproximava dele, pedia uma seção do jornal que ele tinha acabado de ler, ele anuía e se esforçava para sorrir. Uma vez, quando uma jovem mãe sexy com um bebê em um carrinho caminhou até ele, Miron disse a ela, quando abriu mão da primeira página com a manchete espalhafatosa sobre um estupro coletivo na região de Sharon, “Veja para que mundo louco estamos trazendo nossos filhos.” Tinha certeza de que uma declaração destas proporcionaria aproximação, uma sensação de destino comum, mas a mãe sexy apenas olhou para ele com um olhar alienado, meio irritado, e pegou também o suplemento de saúde, sem sequer pedir.
Aconteceu em uma quinta-feira. Um cara gordo e suado entrou no café e sorriu para ele. Miron ficou surpreso. A última pessoa que lhe dera um sorriso fora Maayan, justamente antes de deixá-lo, e aquele sorriso, há mais de cinco meses, fora completamente cínico, enquanto o sorriso do gordo era suave, quase apologético. O cara gordo fez um gesto que, pelo visto, sugeria um pedido para se sentar, e Miron assentiu quase sem perceber. E o gordo sentou-se.
Reuven? Ouça, estou muito sem graça por ter atrasado. Sei que marcamos às dez, mas de manhã eu tive uma tremenda confusão com a menina.
Miron pensou que talvez devesse dizer ao gordo que não era Reuven. Em vez disso, viu-se espiando o relógio e dizendo: “Não tem importância, foram só dez minutos.”
Depois disto, os dois ficaram calados por um segundo, e Miron perguntou se a menina estava bem. O gordo disse que sim, ela estava começando em um novo jardim de infância, e cada vez que ele a levava de manhã, as despedidas eram difíceis.
Mas não importa – o gordo se interrompeu –, você já tem o suficiente na cabeça sem os meus problemas. Vamos ao que interessa.
Miron respirou fundo e esperou.
Olha – disse o gordo –, quinhentos é demais. Faça por quatrocentos. Sabe o que mais? Até quatrocentos e dez e eu me comprometo a levar seiscentas peças.
Quatrocentos e oitenta – rebateu Miron. – Quatrocentos e oitenta. E isso é só se você se comprometer a levar mil peças.
Você tem que entender – disse o gordo –, o mercado está agora na pior, com a recessão e tudo mais. Ontem à noite vi no noticiário gente pegando comida do lixo. Se você continuar pressionando, vou ter que vender na alta. Vou vender na alta, ninguém vai comprar.
Não se preocupe – disse-lhe Miron. – Para cada três pessoas que comem do lixo, há uma andando de Mercedes. 
Isto fez o gordo rir.
Me disseram que você era difícil – ele murmurou com um sorriso.
Sou exatamente igual a você – Miron também sorriu. – Só estou tentando sobreviver, tentando manter corpo e alma juntos.
O gordo enxugou a palma da mão suada na camisa e, em seguida, a estendeu.
Quatrocentos e sessenta – disse ele. – Quatrocentos e sessenta e eu levo mil. – Quando viu que Miron não reagia, acrescentou: – Quatrocentos e sessenta, mil peças e devo-lhe um favor. E você sabe melhor do que ninguém, Reuven, que no nosso setor favores valem mais do que dinheiro.
Esta última frase convenceu Miron a apertar a mão estendida. Era a primeira vez em sua vida que alguém lhe devia um favor. Alguém que achava que seu nome era Reuven, mas mesmo assim. E quando eles acabaram de comer, e discutiam quem iria pagar a conta, Miron sentiu uma pequena onda de calor se espalhando pela barriga. Ele conseguiu se antecipar ao gordo por um décimo de segundo e empurrou a cédula amassada para a mão da garçonete.
Daquele dia em diante, aquilo quase se tornou rotina. Miron se sentava, fazia o seu pedido e aguardava, tenso, qualquer pessoa nova que entrasse no café, e se essa pessoa começava a circular entre as mesas com olhar interrogativo, Miron não hesitava em acenar e convidá-la a se sentar.
Eu não quero que isso acabe no tribunal – disse-lhe um careca com sobrancelhas grossas.
Nem eu – Miron admitiu. – É sempre melhor resolver as coisas amigavelmente.
Só é bom você saber de antemão que não posso fazer turnos noturnos – anunciou uma loura de cabelo cacheado com botox nos lábios.
Então o que é que você quer? – Miron resmungou. – Que todos façam turno noturno exceto você?
Gabi pediu-me para lhe dizer que ele está arrependido – disse um cara com brinco na orelha e dentes podres.
Se ele está realmente arrependido – rebateu Miron –, diga-lhe que venha e me diga ele mesmo, sem intermediários!
No e-mail, você me parecia mais alto – uma ruiva magra reclamou.
No seu e-mail, você soou menos exigente – Miron retrucou mordaz.
E de alguma maneira tudo dava certo no final. Ele e Careca chegaram a um acerto, fora do tribunal. Lábios de Botox concordou em pedir que a irmã cuidasse das crianças para que ela pudesse fazer um turno noturno semanal. Dentes Podres prometeu que Gabi iria telefonar, e a ruiva e ele concordaram que não eram exatamente feitos um para o outro. Parte das pessoas pagou a conta, parte foi convidada por ele. Com a ruiva, a divisão foi meio a meio. Tudo era tão fascinante que, se acontecia de passar uma manhã inteira sem que ninguém sentasse à mesa diante dele, Miron começava a sentir uma ligeira tristeza. Felizmente, isso não acontecia com muita frequência.
Quase dois meses depois que o gordo suado tinha se sentado diante dele, entrou no café um sujeito com o rosto cheio de espinhas. Apesar de todas as espinhas, e do fato de parecer ao menos dez anos mais velho do que Miron, era um cara de boa aparência, com muito carisma. A primeira coisa que disse quando se sentou foi:
Eu tinha certeza que você não iria aparecer.
Mas nós marcamos – disse Miron.
Sim – o espinhento sorriu triste. – Mas, depois do jeito que eu gritei com você no telefone, fiquei com medo que desse para trás.
Mas cá estou eu – disse Miron, quase provocando.
Lamento ter gritado com você no telefone – o sujeito se desculpou. – Realmente, perdi o controle, mas quis dizer cada palavra que eu disse, entendeu? Agora estou pedindo para você parar de vê-la.
Mas eu a amo – disse Miron, com a voz sufocada.
Há coisas que você ama e das quais precisa desistir – disse o de espinhas, e acrescentou: – Ouça alguém um pouco mais velho do que você. Às vezes é preciso desistir.
Lamento – disse Miron –, não posso.
Sim, você pode – zangou-se o das espinhas. – Você pode e vai desistir. Não há nenhuma outra possibilidade. Nós dois talvez a amemos, mas acontece que por acaso sou também o marido dela, e não vou deixar você acabar com a minha família. Entendeu?
Miron sacudiu a cabeça de um lado ao outro.
Você não tem ideia de como foi a minha vida no ano passado – disse ao marido. – Um inferno. Nem mesmo um inferno, apenas um pedaço de um grande e mofado nada. Quando você está vivendo um nada por tanto tempo e, de repente, algo aparece, não pode apenas dizer-lhe para ir embora. Você me entende, não é? Eu sei que me entende.
O marido mordeu o lábio inferior.
Se você se encontrar com ela mais uma vez, matarei você. Não estou brincando, você sabe disto.
Então me mate – Miron deu de ombros. – Isto não me assusta. No final todos morreremos.
O marido se inclinou sobre a mesa e deu um soco no queixo de Miron. Foi a primeira vez na vida que alguém lhe bateu com tanta força, e Miron sentiu uma onda quente de dor surgir em algum lugar no meio do rosto e se espalhar em todas as direções. Um segundo depois, viu-se no chão, com o marido de pé sobre ele.
Vou levá-la para bem longe daqui – gritou o marido, e o chutou no estômago e nas costelas. – Vou levá-la para longe, para outro país, e você não saberá onde. Você nunca mais a verá, está ouvindo, seu merda?
Dois garçons saltaram sobre o marido e de alguma forma conseguiram separá-lo de Miron. Alguém gritou para o barman chamar a polícia. Com o rosto ainda colado no chão frio, Miron observou o marido se afastar correndo do café. Um dos garçons inclinou-se e perguntou-lhe se estava bem. Miron tentou responder.
Você quer que eu chame uma ambulância? – perguntou o garçom.
Miron sussurrou que não.
Tem certeza? – o garçom insistiu. – Seu nariz está sangrando. – Miron balançou a cabeça lentamente e fechou os olhos. Tentou fortemente se imaginar com aquela mulher que nunca mais veria. Tentou, e por um momento quase conseguiu. Todo o seu corpo doía. Sentia-se vivo.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta 

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