Os senhores ficarão surpresos ao ouvir
minha resposta à sua pergunta sobre aquilo em que acredito ou o que
estimo estar acima de tudo: é a transitoriedade.
Mas a transitoriedade é muito triste,
dirão os senhores. Não, replico eu, ela é a alma do ser, é o que
confere valor, dignidade e interesse à vida, pois a transitoriedade
produz o tempo – e o tempo é, ao menos potencialmente, a maior e a
mais útil das dádivas, aparentada em sua essência ou, melhor,
idêntica a tudo que é criador e ativo e vivaz, a toda vontade e
esforço, a todo aperfeiçoamento, a todo progresso rumo ao melhor e
ao mais elevado. Onde não há passado, começo e fim, nascimento e
morte, ali não há tempo – e a atemporalidade é o nada estático,
tão boa e tão ruim quanto este, quanto o absolutamente
desinteressante.
Os biólogos estimam a idade da vida
orgânica sobre a Terra em cerca de 550 milhões de anos. Ao longo
desse tempo, a vida desenvolveu suas formas em inúmeras mutações
até chegar ao homem, seu filho mais jovem e mais irrequieto. Ninguém
saberia dizer se ainda está reservado à vida tanto tempo quanto já
se passou desde o seu surgimento. Ela é muito tenaz, mas está presa
a condições determinadas e, assim como teve um começo, também
terá um fim. A habitabilidade de um corpo celeste é um episódio de
sua existência cósmica. E se a vida completasse mais 550 milhões
de anos – ainda assim, medido pelo metro dos éons, isso não seria
mais que um interlúdio passageiro.
Ela perde por isso o seu valor? Ao
contrário, penso eu, a vida ganha enormemente em valor e alma e
interesse, torna-se propriamente cativante e desperta nossa simpatia
por sua própria condição episódica – e, mais que tudo, por obra
da condição misteriosa e indefinível que é a sua. Por seus
componentes, não se distingue em nada de uma outra existência
material qualquer. Quando se desligou do inorgânico, foi necessário
que a ela se acrescentasse algo que nenhum laboratório até agora
pôde fixar e compreender. E não parou aí. O homem destacou-se mais
uma vez, desta feita do domínio animal – por obra da evolução,
como se pretende, mas, na verdade, novamente por obra de um acréscimo
que só se deixa capturar de modo deficiente com termos como “razão”
e “cultura”. A elevação do homem acima do domínio animal, do
qual muito ainda resta nele, é da escala e da importância de uma
geração espontânea – a terceira, depois da criação do cosmo a
partir do nada e do despertar da vida no seio da existência
inorgânica.
Entre as características mais essenciais
que distinguem o homem do resto da natureza está a consciência da
transitoriedade, do começo e do fim e, portanto, da dádiva do tempo
– desse elemento tão subjetivo, tão singularmente variável, tão
inteiramente sujeito em seu uso à influência do elemento ético que
uma partícula sua pode transformar-se em muita, muita coisa. Há
corpos celestes de densidade tão incrível que uma polegada cúbica
de sua matéria pesaria uma tonelada na Terra. Assim é o tempo do
homem que cria: tem outra estrutura, densidade, fertilidade que o
tempo da maioria, feito de trama mais frouxa e frágil; admirado com
o muito que se acomoda nesse outro tempo, o mais dos homens pergunta:
“Mas quando você faz tudo isso?”
A transitoriedade insufla alma ao ser, e
isso se dá em grau máximo no homem. Não que ele seja o único a
ter alma. Tudo tem alma. Mas a sua é a mais desperta, por conhecer a
equivalência dos conceitos de “ser” e “transitoriedade”, por
conhecer a dádiva do tempo. Ao ser humano é dado santificar o
tempo, ver nele um campo fértil que clama por cultivo constante,
concebê-lo como espaço da atividade, do esforço incessante, da
autorrealização, do progresso rumo às suas mais altas
possibilidades – ao homem é dado, com o auxílio do tempo, extrair
o imperecível do transitório.
A astronomia, ciência grandiosa,
ensinou-nos a considerar a Terra como uma estrela insignificante no
gigantesco turbilhão do cosmo, uma estrelazinha secundária a vagar
na periferia da própria Via Láctea. Tudo isso é sem dúvida
correto em termos científicos – mas, ainda assim, duvido que a
verdade se esgote nessa correção. No fundo da alma, acredito – e
julgo que essa crença seja natural para toda alma humana – que
cabe à Terra uma significação central na ordem do universo. No
fundo da alma, guardo a suposição de que o “Faça-se” que criou
o cosmo a partir do nada anorgânico e gerou a vida já mirava o
homem, e de que com o homem teve início um grande ensaio. Um
fracasso pelas mãos do homem equivaleria ao fracasso, à revogação
de toda a criação.
Sendo ou não assim – seria bom que o
homem se portasse como se assim fosse.
Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas
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