sábado, 5 de setembro de 2020

O Ceilão reencontrado

Uma causa universal, a luta contra a morte atômica, fazia com que eu voltasse de novo a Colombo: Atravessamos a União Soviética, rumo à Índia, no TU-104, o maravilhoso avião a jato posto especialmente à disposição para transportar nossa vasta delegação. Paramos somente em Tashkent, perto de Samarcanda. Em duas viagens o avião nos deixaria no coração da Índia.
Voávamos a 10.000 metros de altura. Para atravessar o Himalaia, o gigantesco pássaro se elevou ainda mais alto, cerca de 15.000 metros. De tão alto se divisa uma paisagem quase imóvel. Aparecem as primeiras barreiras, contrafortes azuis e brancos da cordilheira do Himalaia. Por aí deve andar o imponente homem das neves em sua solidão espantosa. Depois, à esquerda, destaca-se a massa do monte Everest como um pequeno acidente a mais entre os diademas de neve. O sol cai plenamente sobre a paisagem estranha; sua luz recorta os perfis, as rochas dentadas e o império dominante do silêncio nevado.
Evoco os Andes americanos que atravessei tantas vezes. Aqui não predomina aquela desordem, aquela fúria ciclópica, aquele deserto enfurecido de nossas cordilheiras. Estas montanhas asiáticas refulgem mais clássicas, mais ordenadas. Suas cúpulas de neve esculpem mosteiros ou pagodes no vasto infinito. A solidão é mais ampla. As sombras não se alteiam como muros de pedra terrível mas se estendem como misteriosos parques azuis de um mosteiro colossal.
Digo a mim mesmo que vou respirando o ar mais alto do mundo e contemplando de cima as maiores alturas da terra. É uma sensação única, na qual se mesclam a claridade e o orgulho, a velocidade e a neve.
Voamos até o Ceilão. Agora descemos a pouca altura, sobre as terras quentes da India. Deixamos a nave soviética em Nova Délhi para tomar este avião hindu. Suas asas rangem e sacodem entre massas de nuvens violentas. No meio do vai-vém, meus pensamentos estão na ilha florida. Aos 22 anos de idade vivi no Ceilão uma vida solitária e escrevi ali minha poesia mais amarga, rodeado pela natureza do paraíso.
Volto muito tempo depois para esta impressionante reunião de paz, para a qual o governo do país aderiu. Constato a presença de numerosos e às vezes centenas de monges budistas, agrupados, vestidos com suas túnicas cor de açafrão, mergulhados na seriedade e na meditação que caracterizam os discípulos de Buda. Ao lutar contra a guerra, a destruição e a morte, estes sacerdotes afirmam os antigos sentimentos de paz e harmonia pregados pelo príncipe Sidartha Gautama, também chamado Buda. Que distante – penso – de assumir esta conduta está a igreja de nossos países americanos, igreja do tipo espanhol, oficial e beligerante. Que reconfortante seria para os verdadeiros cristãos ver que os sacerdotes católicos, de seus púlpitos, combatessem o crime mais grave e mais terrorífico: o da morte atômica, que assassina milhões de inocentes e deixa para sempre sua mácula biológica na estirpe do homem. Fui tenteando pelas ruelas em busca da casa em que vivi no subúrbio de Wellawatha. Foi difícil encontrá-la. As árvores tinham crescido e a aparência da rua tinha mudado.
A velha casa onde escrevi versos dolorosos ia ser brevemente demolida. As portas estavam carcomidas, a umidade do trópico tinha arruinado seus muros, mas havia me esperado de pé para este último minuto de despedida.
Não encontrei ninguém de meus velhos amigos. No entanto a ilha voltou a ecoar em meu coração com seu som cortante, com seu fulgor imenso. O mar continuava cantando o mesmo canto antigo sob as palmeiras, contra os recifes. Voltei a percorrer as rotas da selva, voltei a ver os elefantes de passo majestoso cobrindo os caminhos, voltei a sentir a embriaguez dos perfumes exasperantes, o rumor do crescimento e a vida da selva. Cheguei até a rocha Sigiriya, onde um rei louco construiu uma fortaleza para si. Reverenciei como antigamente as imensas estátuas de Buda, a cuja sombra caminham os homens como pequenos insetos.
E me afastei de novo, seguro agora de que desta vez seria para nunca mais voltar.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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