sábado, 5 de setembro de 2020

Lição de piano

Meu pai queria que as três filhas estudassem música. O instrumento escolhido foi o piano, comprado com grande dificuldade. E professora mais gorda não podia ser. Era literalmente obesa e tinha mãos minúsculas. Era certo o seu nome: Dona Pupu. Para mim as lições de piano eram uma tortura. Só duas coisas eu gostava das lições. Uma era um pé de acácia que aparecia empoeirado a uma curva do bonde e que eu ficava esperando que viesse. E quando vinha – ah como vinha. A outra: inventar músicas. Eu preferia inventar a estudar. Tinha nove anos e minha mãe morrera. A musiquinha que inventei, então, ainda consigo reproduzir com dedos lentos. Por que no ano em que morreu minha mãe? A música é dividida em duas partes: a primeira é suave, a segunda meio militar, meio violenta, uma revolta suponho. Quando Dona Pupu tocava Chopin me enjoava, Chopin de quem eu gosto. O que não acontecia quando ela me dava doces para comer porque ela comia mesmo. Para estudar eu tinha tanta, mas tanta preguiça que pedia a uma de minhas irmãs para tocar no fininho enquanto eu tocava no grosso ou normal mesmo. E ainda tive sorte: imaginem se meu pai quisesse que eu estudasse violino fino. Eu também tocava de ouvido. Mas uma de minhas irmãs tinha talento verdadeiro. Mudou de Dona Pupu para o maestro Ernani Braga, do Conservatório de Música de Recife. E ele lhe perguntou se ela gostaria de se tornar pianista. Não sei por que ela não quis. Meu pai de noite pedia para tocarmos. Lembro-me de uma tarde, ele estava dormindo, acordou com o rádio e perguntou emocionado que música era aquela. Era Beethoven. Uma de minhas irmãs ainda tem um presente de Dona Pupu: uma boneca de porcelana forrada de seda para se espetarem alfinetes. De nós três é a mais conservadora. Certas coisas eu peço para ela conservar para mim. De Dona Pupu guardo sobretudo as acácias amarelas. Quem morava naquela casa? Isso me interessava mais que as lições de piano. Como eu errava. Ficava pensando em outras coisas. E na própria Dona Pupu. Como é que uma pessoa tão obesa tinha mãos tão delicadas e pequenas, e que voavam no piano. Já deve ter morrido. E que caixão largo devem ter comprado. Ela era casada. Como é que pode? Na minha ignorância genuína devia ser um dos problemas que me preocupavam durante as lições. Na casa de Dona Pupu tinha uma escadaria de entrada onde eu brincava antes da aula. Acho que não tenho mais nada a dizer. Eu também passei para Ernani Braga que disse que eu tinha dedos frágeis. Prefiro calar-me: este também morreu. E meus dedos não são frágeis. Eu tenho uma força, eu sei. E minha força está na suavidade de meus dedos frágeis e delicados.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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