sexta-feira, 4 de setembro de 2020

História de amor

Então, começou a mais doce, a mais sofrida história de amor. Voltava, dos seus encontros com Romualdo, em sobressalto. O filho estava sempre na rua, jogando bola ou em brincadeiras turbulentas com amigos, de sua idade. Uma vez, deu um chute, e com tanta infelicidade, que a unha do dedo grande do pé saltou longe. O negócio inflamou; e Lucília, quando chegou, de uma entrevista amorosa, tomou-se de vergonha e de remorso. Pensou, lavando o pé machucado: enquanto ela se divertia com um homem, além do mais casado, o filho, sozinho, estava precisando de seus cuidados. Vamos que fosse uma coisa pior que um simples esfolamento de dedo. Que remorsos não sentiria? O menino, corajoso, quase não se queixava. E era ela quem tinha de perguntar:
Está doendo?
Mais ou menos.
E Lucília:
Quando estiver doendo, diga!
No dia seguinte, Lucília apareceu triste. Suspirava:
Que vida!
Romualdo acabou se enfezando:
Que vida, por quê? Ela, então, pôs as cartas na mesa:
Reconheço que a culpada sou eu, porque você, sendo casado, eu não devia... Não. Romualdo, não está direito.
Fez uma pausa, antes de completar:
Se, ao menos, você vivesse só pra mim!
Foi brutal:
Ora, Lucília, ora! No mínimo, você está querendo que eu deixe minha mulher! Sou capaz de apostar!
Despediram-se sem carinho. E ele, ressentido, mal se deixou beijar. Disse, apenas:
Vai com Deus, vai!
Nessa noite, ele fez confidências a um amigo. Quando este soube que havia um filho no meio, um marmanjão de 12 anos, foi categórico:
Abacaxi autêntico!
E Romualdo insistiu:
Você não acha um desaforo que ela queira, imagine, que eu deixe minha mulher?
Evidente!
No primeiro encontro, Romualdo rompeu fogo:
Das duas, uma: ou você muda de cara, faz uma cara alegre ou então, minha filha, vamos acabar com esse negócio. Já não estou gostando, nada, nada!
Já o termo “negócio” pareceu-lhe de uma abominável grosseria, de um prosaísmo ultrajante. Além disso, a agressividade, como se ela fosse uma qualquer! Exaltou-se, também:
Não grite! Está pensando que eu sou o quê?
Grito, pronto, grito! Não topo chiquê! Comigo, não!
Ela não disse uma, nem duas. Apanhou a bolsa, que estava em cima da mesa: olhou-se instintivamente, no pequeno espelho; e, num passo lento, encaminhou-se para a porta. Parou um segundo, uma fração de segundo. Esperava talvez que Romualdo a chamasse. Teria, então, voltado, e tudo terminaria numa reconciliação feroz. Mas ele, esbravejou:
Mulheres é que não faltam, inclusive a minha!
Podia haver pontapé mais claro, mais insofismável, mais absoluto? Saiu para nunca mais.
Nelson Rodrigues, in A vida como ela é

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