quarta-feira, 10 de junho de 2020

A longa trilha


Estava no ar. Caninos Brancos sentiu a calamidade vindoura, mesmo antes que houvesse alguma evidência tangível. De maneira vaga, compreendeu que era iminente uma mudança. Não sabia nem como, nem por que, mas captava a vinda do acontecimento futuro através dos próprios deuses. De modos mais sutis do que imaginavam, eles traíam suas intenções ao cachorro-lobo que rondava o alpendre da cabana e que, embora nunca entrasse na cabana, sabia o que se passava dentro das suas mentes.
Ei, escute só isso! – exclamou o condutor de cães na ceia certa noite.
Weedon Scott escutou. Pela porta entrava um ganido ansioso e baixo, como um soluçar abafado que apenas se tornasse audível. Depois vinha a longa fungada, quando Caninos Brancos se assegurava de que o seu deus ainda estava dentro da cabana e não desaparecera numa longa e misteriosa fuga.
Acho que esse lobo sabe o que o senhor vai fazer – disse o condutor de cães.
Weedon Scott olhou para o companheiro com olhos quase suplicantes, embora isso fosse desmentido pelas suas palavras.
Que diabos vou fazer com um lobo na Califórnia? – perguntou.
É o que digo – respondeu Matt. – Que diabos vai fazer com um lobo na Califórnia?
Mas isso não satisfez Weedon Scott. O outro parecia estar julgando a sua atitude com neutralidade.
Os cachorros dos brancos não teriam nenhuma chance contra ele – continuou Scott. – Ele os mataria à primeira vista. Se não me levasse à bancarrota com todas as ações por perdas e danos, as autoridades o tirariam das minhas mãos e o eletrocutariam.
Ele é um rematado assassino, sei – foi o comentário do condutor.
Weedon Scott olhou para o companheiro de modo suspeitoso.
Não funcionaria – disse decidido.
Não funcionaria – concordou Matt. – Ora, o senhor teria de contratar um homem só para cuidar dele.
A suspeita do outro foi abrandada. Acenou com a cabeça alegremente. No silêncio que se seguiu, o ganido baixo e meio soluçante se fez ouvir à porta e depois a longa e inquiridora fungada.
Não dá para negar que ele gosta muito do senhor – disse Matt.
O outro fitou-o com uma raiva súbita.
Raios, homem! Sei o que fazer e o que é melhor para todos!
Concordo com o senhor, só que...
Só o quê? – cortou Scott.
Só que... – o condutor de cães começou suavemente, depois mudou de ideia e deixou transparecer uma crescente raiva dentro de si. – Bem, não precisa ficar tão esquentado. A julgar pelas suas ações, alguém poderia pensar que não sabe o que fazer.
Weedon Scott discutiu consigo mesmo por algum tempo, e depois disse mais gentilmente:
Tem razão, Matt. Não sei o que fazer, e esse é que é o problema.
Ora, seria muito ridículo levar esse cachorro comigo – irrompeu depois de outra pausa.
Concordo com o senhor – foi a resposta de Matt, e mais uma vez o seu patrão não ficou satisfeito com o que ouvia.
Mas como é que, em nome do grande Sardanapalo, ele sabe que o senhor vai embora é o que me intriga – continuou o condutor inocentemente.
Foge à minha compreensão – respondeu Scott, sacudindo tristemente a cabeça.
Então chegou o dia em que, pela porta aberta da cabana, Caninos Brancos viu a valise fatal sobre o chão e o senhor do amor arrumando as suas coisas na mala. Além disso, havia idas e vindas, e a atmosfera até então plácida da cabana estava agitada por estranhas perturbações e desassossegos. Ali estava a evidência indubitável. Caninos Brancos já a tinha pressentido. Ele agora a ponderava. O seu deus estava se preparando para outra fuga. E, como não o levara junto antes, o que podia esperar era ser deixado para trás mais uma vez.
Naquela noite, Caninos Brancos soltou o longo uivo do lobo. Assim como tinha uivado nos seus dias de filhote, quando fugira da Floresta até a vila só para encontrá-la vazia, nada a não ser um monte de lixo a marcar o sítio da tenda de Castor Cinza, ele apontou o focinho para as estrelas frias e desabafou toda a sua dor.
Dentro da cabana, os dois homens tinham acabado de ir para a cama.
Ele não quer comer de novo – observou Matt do seu beliche.
Houve um resmungo vindo do beliche de Weedon Scott, e uma agitação nos cobertores.
Pela maneira como se comportou na outra vez que o senhor viajou, não me admiraria se desta vez ele morresse.
Os cobertores no outro beliche se agitaram irritados.
Oh, cale a boca! – gritou Scott na escuridão. – Você incomoda mais que uma mulher.
Concordo com o senhor – respondeu o condutor, e Weedon Scott não ficou muito certo se o outro tinha dado uma risadinha ou não.
No dia seguinte, a ansiedade e inquietação de Caninos Brancos eram ainda mais pronunciadas. Ele seguia os passos do dono sempre que esse saía da cabana, e rondava o alpendre quando o dono permanecia lá dentro. Pela porta aberta, podia vislumbrar a bagagem no chão. À valise juntaram-se duas grandes malas de lona e uma caixa. Matt estava enrolando a manta de pele e os cobertores do dono dentro de uma pequena lona. Caninos Brancos ganiu ao ver a operação.
Mais tarde, chegaram dois índios. Ele os observou com atenção, enquanto punham a bagagem sobre os ombros e desciam o morro atrás de Matt, que carregava a roupa de cama e a valise. Mas Caninos Brancos não os seguiu. O dono ainda estava na cabana. Depois de algum tempo, Matt retornou. O dono veio até a porta e chamou Caninos Brancos para dentro.
Pobre diabo – disse gentilmente, esfregando as orelhas de Caninos Brancos e dando palmadinhas na sua espinha. – Eu vou pegar a longa trilha, vou para onde você não pode me seguir. Agora me dê um rosnado... o último, um bom rosnado de adeus.
Mas Caninos Brancos recusou-se a rosnar. Em vez disso, e depois de um olhar inquisitivo e desejoso, ele se aconchegou, enterrando a cabeça entre os braços e o corpo do dono, desaparecendo da vista.
O apito! – gritou Matt. Do Yukon elevou-se o berro rouco de um vapor fluvial. – O senhor vai ter de abreviar a despedida. Não deixe de trancar a porta da frente. Vou sair pelos fundos. Vamos!
As duas portas bateram ao mesmo tempo, e Weedon Scott esperou que Matt desse a volta até a frente. De dentro da cabana vinham um ganido e um soluçar surdos. Depois longas e profundas fungadas.
Você tem de cuidar bem dele, Matt – disse Scott, enquanto partiam morro abaixo. – Escreva e me conte como ele está se portando.
Certo – respondeu o condutor. – Mas escute só!
Os dois homens pararam. Caninos Brancos estava uivando como os cachorros uivam quando o dono morreu. Estava dando voz a uma tristeza absoluta, o grito elevando-se em ímpetos de cortar o coração, diminuindo numa aflição tremida, depois elevando-se de novo em torrente após torrente de dor.
O Aurora era o primeiro vapor do ano a partir para o Exterior, e seus conveses estavam apinhados de aventureiros prósperos e caçadores de ouro quebrados, todos igualmente loucos para chegar ao Exterior como antes tinham estado loucos para penetrar no Interior. Perto da prancha de desembarque, Scott estava apertando a mão de Matt, que se preparava para voltar à margem. Mas a mão de Matt se afrouxou no aperto da mão do outro, enquanto seu olhar passava além do companheiro e fixava-se em algo mais atrás. Scott virou-se para ver. Sentado no convés a alguns metros de distância, e observando ansioso, estava Caninos Brancos.
O condutor de cães praguejou em voz baixa, com acentos aterrados nas palavras. Scott só olhava, admirado.
O senhor trancou a porta da frente? – perguntou Matt.
O outro fez que sim com a cabeça e perguntou:
E a dos fundos? – Pode apostar que sim – foi a resposta fervorosa.
Caninos Brancos achatou as orelhas de modo insinuante, mas permaneceu onde estava, sem fazer nenhuma tentativa de se aproximar.
Vou ter de levá-lo comigo para a margem.
Matt deu uns dois passos na direção de Caninos Brancos, mas o outro se esquivou. O condutor correu para pegá-lo, e Caninos Brancos escapou entre as pernas de um grupo de homens. Curvando-se, virando-se, furtando-se, ele escapava pelo convés, eludindo os esforços do outro para capturá-lo.
Mas quando o senhor do amor o chamou, Caninos Brancos aproximou-se com pronta obediência.
Não quer vir para a mão que o alimentou todos esses meses – resmungou o condutor ressentido. – E o senhor... o senhor nunca o alimentou depois daqueles primeiros dias de convivência. Não consigo entender como é que ele decidiu que o senhor é que é o dono.
Scott, que estivera afagando Caninos Brancos, de repente chegou-se mais perto e apontou cortes frescos no focinho e um talho entre os olhos.
Matt inclinou-se e passou a mão pela barriga de Caninos Brancos.
Esquecemos a janela. Ele está todo cortado e arranhado por baixo. Deve ter pulado e quebrado o vidro, meu Deus!
Mas Weedon Scott não estava escutando. Estava pensando rápido. O apito do Aurora fez soar o anúncio final da partida. Alguns homens escapuliam apressados pela prancha de desembarque até a margem. Matt soltou a bandana de seu pescoço e começou a colocá-la ao redor do pescoço de Caninos Brancos. Scott agarrou a mão do condutor.
Adeus, Matt, meu velho. Sobre o lobo... não precisa me escrever. Você entende, eu...!
O quê! – explodiu o condutor. – Não vai me dizer que...
Exatamente isso. Aqui está a sua bandana. Sou eu que vou lhe escrever sobre o lobo.
Matt parou no meio da prancha de desembarque.
Ele não vai suportar o clima! – gritou para Scott. – A não ser que o senhor corte o pelo nos meses de calor!
A prancha de desembarque foi retirada, e o Aurora afastou-se balouçando da margem. Weedon Scott abanou um último adeus. Depois virou-se e inclinou-se sobre Caninos Brancos, parado a seu lado.
Agora rosne, seu sem-vergonha, rosne! – disse enquanto afagava a cabeça receptiva e esfregava as orelhas achatadas.
Jack London, in Caninos Brancos

Nenhum comentário:

Postar um comentário