Depois
de banquetes e sexo gay nos primórdios do império romano, de fumo e
cerimônias na América do Norte, de jogos de pelota e crenças no
México, deparamos agora com outro tipo de prazer social elaborado: a
contemplação da pintura. Quero observar especificamente uma
obra-prima da pintura da China, em forma de rolo, baseada num
original pintado por volta dos anos 400 ou 500 d.C. Ela compreende
três formas de arte distintas, conhecidas liricamente na China como
as “três perfeições”: pintura, poesia e caligrafia. Por ser um
rolo manual, era para ser vista na companhia de amigos e, como bela
obra de arte, foi apreciada por imperadores durante centenas de anos.
É conhecida como As Admoestações da Preceptora às Damas da
Corte, ou Pergaminho das Admoestações, e é uma espécie
de cartilha antiga de boas maneiras, e sobretudo de conduta moral,
para as damas da corte chinesa: ensina às mulheres poderosas como
devem se comportar.
O
imperador rejeita sua esposa. Eis a tradução dos versos: Ninguém
agrada para sempre; / Afeição não pode ser para um só; / Se for,
acabará em desgosto. / Quando o amor atinge o clímax muda de
objeto; / Pois tudo que alcança a plenitude começa a declinar. /
Esta lei é absoluta. / A “bela esposa que se sabe bela” / Logo
era odiada. / Se com ar afetado tentas agradar, / Os homens sensatos
te abominarão. / Vem daí, certamente, / A quebra dos laços de
favoritismo.
Um
tema comum nos objetos que descrevi nos últimos capítulos tem sido
a mudança de atitudes em relação àquilo que constitui uma forma
aceitável de prazer. Em diferentes épocas da história do mundo, o
tempero se tornou vício — ou vice-versa. Mas apreciar uma obra de
arte como o Pergaminho das Admoestações sempre foi
inteiramente aceitável, e o próprio objeto traz o registro daqueles
que, ao longo dos séculos, tiveram a sorte de vê-lo e apreciá-lo.
O
rolo está entregue aos cuidados de um estúdio do British Museum
especializado em conservação de pinturas do Leste Asiático, onde a
pintura pode ser toda estendida — ela tem quase 3,5 metros de
comprimento. Sua criação envolveu artistas de diferentes períodos
e desde que foi concluída tem sido continuamente apreciada e
preservada. O ponto de partida foi um longo poema escrito pelo
cortesão Zhang Hua em 292 d.C. Mais ou menos um século mais tarde,
por volta do ano 400, uma famosa pintura — agora tida como perdida
— incorporou o poema. É provável que o Pergaminho das
Admoestações tenha sido terminado uns duzentos anos depois, mas
ele copiou e capturou tão fielmente o espírito da grande pintura
original que muitos até acreditam que esta talvez seja a obra
original. Seja qual for sua condição exata, este pergaminho é um
dos exemplos mais consagrados das primeiras pinturas chinesas que
chegaram até nós.
Cerca
de metade dele é composta de cenas pintadas, separadas uma da outra
por versos. À medida que o desenrolamos, vamos lendo o poema e vendo
uma cena de cada vez; desenrolar é parte essencial do prazer. Um dos
quadros mostra um episódio perturbador. Uma bela e sedutora mulher
do harém da corte aproxima-se do imperador. Suas túnicas e faixas
vermelhas ondulantes lhe acentuam os movimentos enquanto ela segue,
balançando e flertando, em direção ao homem. Porém, olhando com
mais atenção, vemos que na verdade ela vacila: é detida pelo braço
estendido e pela mão do imperador, erguidos num inequívoco gesto de
rejeição. O imperador está acima do desejo carnal. O corpo dela se
contorce enquanto começa a recuar, e seu rosto estampa a expressão
de uma vaidade perplexa e frustrada.
Quando
Zhang Hua escreveu o poema em 292 d.C., a China passava por um
período de fragmentação, após o colapso do império Han. Forças
rivais disputavam a supremacia, fazendo constantes ameaças de
destronar o imperador. Ele era deficiente mental, por isso sua
mulher, a imperatriz Jia, acumulou grande poder, que utilizava
espetacularmente mal. De acordo com uma história escrita na época,
Zhang Hua, que era ministro da corte, ficava cada dia mais
horrorizado com a usurpação da autoridade do imperador por ela e
seu clã; a imperatriz ameaçava a estabilidade da dinastia e do
Estado por meio de assassinatos, intrigas e tumultuosos
relacionamentos sexuais. A intenção explícita de Zhang Hua ao
escrever era instruir todas as mulheres da corte, mas seu alvo
principal era a própria imperatriz. Ele esperava que, usando o
veículo belo e inspirador da poesia, pudesse conduzir sua governante
extraviada de volta à correção moral, ao comedimento e ao decoro:
Mantenha
guarda atentamente sobre sua conduta;
Pois
disso virá a felicidade.
Cumpra
suas obrigações com calma e respeito;
Assim
conquistará glória e honra.
A
pintura que ilustra esse poema também tem um elevado objetivo moral.
Embora se destinem às mulheres, as lições aplicam-se igualmente
aos homens. O imperador, quando se recusa a ser seduzido por sua
vaidosa mulher, dá um exemplo de discernimento e força masculinos.
O Dr. Shane McCausland, renomado especialista nos primórdios da
pintura chinesa, estudou minuciosamente o Pergaminho das
Admoestações:
É
sobre crítica positiva. O artista não tenta dizer às pessoas o que
não devem fazer, e sim como fazer algo da melhor forma. Cada cena
descreve maneiras de as damas da corte aperfeiçoarem sua conduta,
seu comportamento, seu caráter. A admoestação, na verdade, diz
respeito a aprender, a aperfeiçoar-se; mas, para isso, se o público
já possui uma fama ruim, o autor precisa injetar muita graça e
muito humor no que diz. Foi exatamente o que ele fez. Tem bastante a
ver com dignidade real, com tradição do estadismo, com governo
baseado em princípios. É um retrato inspirado e revelador das
interações inerentes à função de governar.
Infelizmente,
a imperatriz Jia era inacessível à mensagem moral do poema e
prosseguiu em suas escandalosas proezas sexuais e atividades
sanguinárias. Parte de sua brutalidade talvez fosse justificável,
uma vez que havia rebeldes empenhados em provocar uma guerra civil,
até que, enfim, no ano 300, um golpe foi bem-sucedido. A imperatriz
foi presa e obrigada a cometer suicídio.
Um
século depois, por volta do ano 400, a corte foi afligida pelos
mesmos problemas. Certa vez o imperador Xiaowudi comentou com sua
consorte favorita: “Agora que você tem trinta anos, é hora de
trocá-la por alguém mais jovem.” Era um gracejo, mas ela não
gostou nem um pouco e o matou naquela noite. A corte ficou
escandalizada. Sem dúvida era tempo de lembrar a todos como deviam
se comportar, reeditando o poema de Zhang Hua num rolo pintado pelo
maior artista do momento, Gu Kaizhi. A obra-prima resultante é o
Pergaminho das Admoestações. A Dra. Jan Stuart, curadora do
Departamento da Ásia no British Museum, conhece muito bem esta
pintura e seus objetivos:
O
pergaminho encaixa-se numa tradição de imagens didáticas
estabelecida na dinastia Han e influenciada pelo grande filósofo
Confúcio. Lendo o texto junto com as imagens, percebe-se que uma
profunda mensagem está sendo transmitida. Confúcio acreditava que
todos têm uma função e um lugar específicos na sociedade, e, se
isso for respeitado, garante-se uma sociedade muito saudável e
eficaz. A mensagem deve ter tido especial importância na época do
poema que serviu de base para este pergaminho. Diz a mensagem que a
mulher, mesmo quando possui grande beleza, deve sempre demonstrar
humildade, obedecer às regras e jamais esquecer sua posição em
relação ao marido e à família; assim agindo, será uma força
positiva e ativa na promoção da ordem social.
Uma dama corre para salvar o imperador de um urso feroz
No
Pergaminho das Admoestações lê-se que uma dama jamais deve
explorar os hábitos ou as fraquezas de seu homem. Só deve ficar na
frente do imperador se for para protegê-lo de um perigo. Outra cena
do pergaminho ilustra um acontecimento real, em que um feroz
urso-negro escapou da jaula durante uma apresentação para o
imperador e as damas do harém. Nessa cena em particular, veem-se
primeiro duas damas fugindo do animal e olhando para trás
horrorizadas. Em seguida, vê-se o imperador sentado, paralisado de
espanto, e diante dele uma valorosa dama que em vez de fugir correu
para se colocar entre o imperador e o urso, que pula diante dela,
rosnando ferozmente. Mas o imperador está são e salvo. Esse,
diz-nos a pintura, é o tipo de sacrifício de que necessitamos e que
esperamos de nossas grandes damas.
Este
pergaminho tornou-se objeto de estima de muitos imperadores, que
talvez vissem nele um instrumento útil para ajudar a acalmar esposas
e amantes difíceis, mas também admiravam sua grande beleza e
colecionavam esta preciosa obra-prima para mostrar que eram
culturalmente astutos e poderosos. Sabemos bem em quais cortes ele
foi visto, porque cada governante imperial deixou sua marca, na forma
de um selo cuidadosamente colocado nos espaços em branco em torno
das pinturas e da caligrafia. Alguns dos donos anteriores também
tinham acrescentado seus próprios comentários. Isso produz uma
espécie de deleite que nunca se tem diante de uma pintura europeia:
a sensação de compartilhar o prazer que se sente com pessoas de
séculos passados, de participar de uma comunidade de perspicazes
conhecedores de arte que têm amado esta pintura através dos
séculos. Por exemplo, o imperador Qianlong, do século XVIII —
contemporâneo de George III —, assim resume sua avaliação do
pergaminho:
A
pintura Admoestações da
Preceptora, de Gu Kaizhi, com texto. Autêntica relíquia.
Tesouro de divina qualidade pertencente ao Palácio Interno.
Era
uma relíquia tão apreciada que poucas pessoas tinham acesso a ela.
Isso ainda vale, mas por outra razão: a seda em que está pintada
sofre muito quando exposta à luz e, portanto, é delicada demais
para ficar em exposição, a não ser muito raramente. Mas, embora
não seja permitido imprimirmos nela nosso selo ou o registro de
nosso prazer, graças à moderna tecnologia de reprodução podemos
nos juntar ao imperador Qianlong e às outras pessoas que ao longo
das décadas têm se deliciado com a contemplação do Pergaminho
das Admoestações. Graças à internet, o prazer que era
reservado à corte imperial chinesa tornou-se universal.
Neil
MacGregor, in A história do mundo em 100 objetos
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