segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Outra travessia

Fotograma do filme "As vinhas da ira" (1940), de John Ford

Os homens estavam carregando o caminhão. Tio John estava na carroceria, e os outros lhe passavam as coisas. Ele as pegava com cuidado, prestando atenção para que a superfície do carregamento ficasse no mesmo nível. A mãe punha a carne de porco restante num panelão, e Tom e Al levaram ambas as barricas ao rio e lavaram-nas bem. Amarraram-nas depois no estribo, trouxeram água nos baldes e encheram-nas. Depois as cobriram com pano de lona, para que a água não entornasse. Só faltava agora carregar a tenda e o colchão da avó.
Tom disse:
Com essa carga toda que a gente leva, esse calhambeque vai ferver como o diabo. É bom a gente levar bastante água.
A mãe tirou as batatas da panela, trouxe o saco meio vazio da tenda. A família comeu em pé, jogando a batata de uma mão para a outra até esfriar.
A mãe foi à tenda dos Wilson, ficou lá uns dez minutos e voltou silenciosa.
Tá na hora da gente ir — disse.
Os homens entraram na tenda dos Joad. A avó dormia ainda, de boca aberta. Eles pegaram-na, com colchão e tudo, e depuseram-na devagarinho sobre a carroceria, em cima da carga. A avó encolheu as pernas e fez uma careta, mas não acordou.
Tio John e o pai estenderam a lona sobre as varetas laterais do caminhão, de maneira que ela parecia formar uma tenda. As pontas, eles amarraram nas bordas do veículo. Agora estava tudo pronto. O pai tirou a bolsa de dinheiro e puxou duas notas amarrotadas. Foi a Wilson e estendeu-as.
A gente gostava que o senhor ficasse com isto, e... — ele apontou para as batatas e a carne de porco — com isto também.
Wilson sacudiu energicamente a cabeça.
Não, senhor — disse. — Nada disso. Vocês não têm bastante nem para si mesmos.
Dá, até a gente chegar — disse o pai. — Não vai fazer falta. E se arruma trabalho logo.
Não, senhor — disse Wilson. — Fico aborrecido se vocês não levarem isso.
A mãe tomou as duas notas das mãos do pai. Alisou-as bem e colocou-as no chão e pôs-lhes em cima o panelão com a carne de porco.
Fica aqui — disse ela. — Se o senhor não quiser, um outro qualquer fica. — Wilson, cabeça baixa, voltou-se e foi para a sua tenda; e a lona fechou-se atrás dele.
Por alguns instantes, a família esperou.
Bom, vamo indo — disse Tom. — Acho que são quase quatro horas.
A família trepou no caminhão, a mãe no alto da carga, ao lado da avó. Tom, Al e o pai no assento, e Winfield no colo do pai. Connie e Rosa de Sharon fizeram um ninho num canto da carroceria, junto à cabine do motorista. O pregador, Tio John e Ruthie iam amontoados sobre a carga.
O pai gritou:
Adeus, senhor Wilson; adeus, senhora Wilson!
Da tenda não veio resposta alguma. Tom acionou o motor e o caminhão arrancou. Quando estavam galgando a pequena estrada que conduzia a Needles e à estrada principal, a mãe olhou para trás. Wilson estava parado diante de sua tenda, acompanhando-os com os olhos. O sol projetava-se em cheio em seu rosto. A mãe agitou a mão para cumprimentá-lo, mas ele não respondeu ao gesto.
Tom atravessou a pequena estrada em segunda, para proteger as molas. Em Needles, parou diante de um posto e verificou a pressão de ar dos pneus, mandando encher o tanque de gasolina. Comprou duas latas de gasolina, de cinco galões cada uma, e uma lata de óleo, de dois galões. Encheu o radiador, pediu um mapa emprestado e estudou-o.
O empregado do posto, em seu uniforme branco, pareceu estar inquieto, enquanto a conta não foi paga.
Vocês são corajosos — observou ele depois.
Tom ergueu os olhos de sobre o mapa.
Por que você diz isso? — perguntou.
Ora, fazer a travessia num calhambeque destes.
Você já fez essa travessia?
Já, muitas vezes. Mas não numa carcaça assim.
Quer dizer que se quebrar um troço qualquer ninguém nos poderá tirar da encrenca?
Bem, talvez sim. Mas é que geralmente ninguém gosta de parar de noite. Eles têm medo. Aliás, eu também não sou melhor. É preciso muita coragem pra fazer isso.
Tom riu.
Não é preciso muita coragem quando não se pode fazer outra coisa. Bom, muito obrigado. Nós vamo indo. — Subiu no caminhão e foi rodando.
O empregado de branco entrou no escritório do posto, onde um colega trabalhava num livro-caixa.
Puxa, um caminhão cheio de troços como nunca vi!
Qual? O calhambeque desses Okies? Todos eles são assim.
Deus do céu, eu é que não viajava desse jeito, nunca!
Bem, a gente não é besta. Mas esses danados desses Okies andam completamente malucos, não têm mais nem sentimentos, não são humanos. Um homem não pode viver assim. Nenhum homem aguenta viver sujo e na miséria. Valem pouco mais que uns gorilas.
Nem num Hudson Super-Six eu gostaria de fazer a travessia do deserto. Esses carros fazem um barulho de metralhadora.
O outro debruçou-se de novo sobre o seu livro-caixa. E grossa baga de suor caiu em seu dedo, parando sobre o maço de faturas cor-de-rosa.
Você sabe, eles não se incomodam muito. São tão estúpidos que nem notam o perigo. Não veem um palmo adiante do nariz, Jesus Cristo! E então por que é que você se incomoda tanto com eles?
Eu não me incomodo. Só disse que eu é que não ia fazer uma coisa dessas.
Natural, é porque você sabe o que significa uma viagem assim. Mas eles não sabem. — E limpou o suor, que caíra sobre as faturas, com a manga.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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