Era
uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender
que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos
repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua
vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão
coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá
estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E
as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de
um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz
purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:
— Mocinha.
As
pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
— Nome,
nome mesmo, é Margarida.
O
corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara.
Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham
morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase
cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola
davam-lhe pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava
comer muito. Quando lhe davam cama para dormir davam-na estreita e
dura porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela também
não agradecia muito: sorria e balançava a cabeça.
Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:
Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:
— Passeando.
Acharam
graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era
verdade. Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para
o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que pretendia
interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara
para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a
velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma
pessoa sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro.
Sua
vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de
Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e
achou que assim também era demais. De algum modo tinham razão.
Todos Iá eram muito ocupados, de vez em quando surgiam casamentos,
festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha,
ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma
pancadinha no ombro: “olha!”. Sobretudo uma das moças da casa
sentia um mal-estar irritado, a velha enervava-a sem motivo.
Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse
tratar-se de um ricto inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém
falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de mandá-la morar em
Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais
animada do que uma velha poderia provocar.
Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis, levou a velha no carro.
Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis, levou a velha no carro.
Por
que Mocinha não dormiu na noite anterior? À ideia de uma viagem, no
corpo endurecido o coração se desenferrujava todo seco e
descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem
água. Em certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando,
às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de
vida, de repente aclaravam-lhe algumas ideias. Lembrou-se de coisas
que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho
atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão — se ele tivesse
vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria
atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele.
Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara
com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro
que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o
marido em mangas de camisa. Mas não era possível, estava certa de
que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas
de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e
da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda
mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente
descobriu que a cama era dura.
— Que
cama dura, disse bem alto no meio da noite.
É
que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha
consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de
súbito — mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou
a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que
guardava secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato,
arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E
com a comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora
fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho.
Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de
observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de
novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de
ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada
adormeceu.
E
pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça
veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão.
Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos.
As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela
se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os
cabelos.
Quando
enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se
surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. “Tem mais
saúde do que eu!”, brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: “E
eu que até tinha pena dela”.
Mocinha
sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas
irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o
automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor
no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento. O rapaz
virou-se para trás:
— Não
vá enjoar, vovó!
As
moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez
em quando encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a
velha quis responder, mas não pôde. Quis sorrir, não conseguiu.
Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam
que não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu um
pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado.
A
viagem foi muito bonita.
As
moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. E,
embora o coração batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por um
cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um
soldado, gato! letras — tudo engolido pela velocidade.
Quando Mocinha acordou não sabia mais aonde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo instante.
Quando Mocinha acordou não sabia mais aonde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo instante.
Então
a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de
paletó — achei, achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no
cabide. Lembrou-se do nome da amiga de Maria Rosa, daquela que morava
defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada. As lembranças
quase lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios
devagar e dizia baixo algumas palavras.
As
moças falavam:
— Ah,
obrigada, um presente desses eu rejeito!
Foi
quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no
carro? como conhecera seu marido e aonde? como é que a mãe de Maria
Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela
gente? Logo depois acostumou-se de novo.
O
rapaz disse para as irmãs:
— Acho
melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do
carro, a gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que
é para ficar.
Uma
das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma
incompreensão típica de homem, falasse demais diante da namorada.
Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a
cunhada.
— É
sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha,
Mocinha, você entra por aquele beco e não há como errar: na casa
de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu?
Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na
casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o
garoto, viu…
Mocinha
desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas
pairando entontecida sobre rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia
comprida por entre as pernas. Arnaldo não estava. Mocinha entrou na
saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó amarrado na
cabeça, tomava café. Um menino louro — decerto aquele que Mocinha
deveria vigiar— estava sentado diante de um prato de tomates e
cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas
balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de
aveia, empurrou-lhe na mesa pão torrado com manteiga. As moscas
zuniam. Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente
talvez passasse o frio no corpo.
A
mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não
acreditara na história da recomendação da cunhada, embora “de
lá” tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse ouvido de
alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes
acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É que aquela
história não estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido,
nem sequer escondia o sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha
na saleta, com o armário cheio de louça nova.
— Preciso
antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o
que se pode fazer.
Mocinha
não entendeu muito bem, pois ela falava como gringa. Mas entendeu
que era para continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e
uma vertigem que escurecia a sala toda. Os lábios ardiam secos e o
coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo
e lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata,
rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito
fino e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo branco e
mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou bastante queijo no pão torrado
e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a
barriga grande, agarrou um palito e levantou-se
Mãe,
cem cruzeiros.
Não.
Para quê?
Chocolate.
Não.
Amanhã é que é domingo.
Uma
pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em
vésperas de domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de
tomar conta daquele menino. Sempre gostara de criança loura: todo
menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela casa?
Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam
ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria
mesmo era café.
A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.
A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.
Afinal
Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era
louro. Falou em voz baixa com a mulher, e depois de demorada
confabulação, informou firme e curioso para Mocinha:
— Não
pode ser não, aqui não tem lugar não.
E
como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais
alto:
— Não
tem lugar não, ouviu?
Mas
Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as
duas mulheres na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A
esposa esticada e vermelha. E mais adiante a velha murcha e escura,
com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do
sorriso malicioso da velha, ele se impacientou:
— E
agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem
para o Rio, ouviu? volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz:
casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim:
casa de Arnaldo não é asilo não, viu!
Mocinha
pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se
sentar para comer, Mocinha reapareceu:
— Obrigada,
Deus lhe ajude.
Na
rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentia a
menor saudade. Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada,
afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como se pregasse uma
peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um
homem passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse,
foi iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não
conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si
própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede voltou-lhe,
queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A
estrada de Petrópolis é muito bonita.
No
chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta
descalça enchia uma lata de água.
Mocinha
ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em
concha e beber.
Quando
a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de
um esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água
escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos,
pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.
A
estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro,
e subia muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma
árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma
nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A
estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como
estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e
morreu.
Clarice
Lispector, in A legião estrangeira
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