terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Magia e mistério

Além disso me dei conta de que o mundo mexicano, reprimido, violento e nacionalista, envolto por sua cortesia pré-colombiana, continuaria tal como era sem minha presença nem meu testemunho.
Quando decidi regressar a meu país, compreendia menos a vida mexicana do que quando cheguei ao México.
As artes e as letras eram produzidas em círculos rivais mas ai daquele que, de fora, tomasse partido pró ou contra alguém ou algum grupo: uns e outros caíam-lhe em cima.
Quando já tinha me preparado para partir, fizeram-me alvo de uma manifestação gigantesca: um jantar de cerca de três mil pessoas, sem contar centenas que não encontraram lugar. Vários presidentes da república enviaram sua adesão. Não obstante, o México é a pedra de toque das Américas e não foi por acaso que se entalhou ali o calendário solar da América antiga, o círculo central da irradiação, da sabedoria e do mistério.
Tudo podia acontecer, tudo aconteceu. O único jornal da oposição era subvencionado pelo governo. Era a democracia mais ditatorial que se possa conceber.
Recordo de um acontecimento trágico que me comoveu terrivelmente. Uma greve se prolongava em uma fábrica sem que se vislumbrasse solução. As mulheres dos grevistas reuniram-se e decidiram ir ao presidente da república para contar-lhe talvez suas privações e suas angústias. É evidente que não levavam armas. Pelo caminho compraram algumas flores para oferecê-las ao mandatário ou à sua senhora. As mulheres iam entrando no palácio quando um guarda as deteve. Não podiam continuar. O senhor presidente não as receberia. Deviam dirigir-se ao ministério correspondente. Além disso era preciso que desocupassem o lugar. Era uma ordem terminante.
As mulheres alegaram sua causa. Não ocasionariam o menor aborrecimento. Queriam somente entregar essas flores ao presidente e pedir-lhe que solucionasse a greve logo. Faltava comida para seus filhos, não podiam continuar assim.
O oficial da guarda se negou a levar qualquer recado. As mulheres, por sua vez, não se retiraram.
Ouviu-se então uma descarga cerrada de várias armas que provinha da guarda do palácio. Seis ou sete mulheres caíram mortas no local, ficando muitas outras feridas.
No dia seguinte efetuaram-se funerais às pressas. Pensava eu que um imenso cortejo acompanharia os caixões das mulheres assassinadas. No entanto poucas pessoas compareceram. Falou, isso sim, o grande líder sindical, que era conhecido como um eminente revolucionário. Seu discurso no cemitério foi estilisticamente irreprochável. Li-o por completo no dia seguinte nos jornais. Não continha uma só linha de protesto, não havia uma palavra de ira nem nenhum pedido para que os responsáveis de um ato tão atroz fossem julgados. Duas semanas mais tarde ninguém mais falava do massacre. E nunca vi escrito que alguém lembrasse disso depois.
O presidente era asteca, mil vezes mais intocável do que a família real da Inglaterra. Nenhum jornal, nem de brincadeira nem a sério, podia criticar o excelso funcionário sem receber imediatamente um golpe mortífero.
O pitoresco envolve de tal maneira os dramas mexicanos que a gente vive pasmada diante da alegoria, uma alegoria que se distancia mais e mais da palpitação intrínseca, do esqueleto sangrento. Os filósofos tornaram-se preciosistas, lançados em investigações existenciais que, junto do vulcão, parecem ridículas. A ação civil é entrecortada e difícil. A sujeição adota diversas correntes que se estratificam ao redor do trono.
Mas tudo de mágico surge e ressurge sempre no México. Desde um vulcão que começou a nascer na horta humilde em que um camponês semeava feijões até a desenfreada busca do esqueleto de Cortez que, segundo se diz, descansa no México com seu elmo de ouro cobrindo secularmente o crânio de conquistador, e a não menos intensa perseguição dos restos do imperador asteca Cuauthémoc, perdidos há quatro séculos e que inesperadamente aparecem aqui e ali, custodiados por índios secretos para voltar a submergir sem trégua na noite inexplicável.
O México vive em minha vida como uma pequena águia equivocada que circula em minhas veias. Só a morte lhe dobrará as asas sobre meu coração de soldado adormecido.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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