terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Além de sexo e violência

Se os Sapiens governam o mundo porque somente nós somos capazes de colaborar em grande número e com flexibilidade, isso derruba nossa crença na sacralidade dos seres humanos. Tendemos a pensar que somos especiais e, portanto, merecemos todos os tipos de privilégio. Como prova, apontamos para as assombrosas conquistas de nossa espécie: construímos as pirâmides e a Grande Muralha da China, deciframos a estrutura do átomo e de moléculas de DNA, chegamos ao polo sul e à Lua. Se essas realizações resultaram de uma essência única que cada indivíduo humano tem — uma alma imortal, digamos —, então faria sentido essa santificação da vida humana. Mas, se esses triunfos resultam na verdade de uma cooperação massiva, fica muito menos claro o motivo pelo qual deveriam fazer-nos reverenciar humanos individualmente.
Uma colmeia de abelhas tem muito mais poder do que uma borboleta individualmente, no entanto isso não implica que uma abelha seja mais santificada que uma borboleta. O Partido Comunista romeno dominou com êxito a desorganizada população romena. Disso se depreende que a vida de um membro do partido era mais sagrada que a vida de qualquer cidadão comum? Humanos sabem cooperar entre si com muito mais eficácia do que chimpanzés, razão pela qual lançam espaçonaves à Lua enquanto chimpanzés atiram pedras em visitantes de zoológicos. Isso quer dizer que humanos são seres superiores?
Bem, talvez. Isso depende, em primeiro lugar, daquilo que faculta aos humanos cooperar tão bem. Por que somente os humanos são capazes de construir sistemas sociais tão grandes e sofisticados? A cooperação social entre a maioria dos mamíferos sociais, como chimpanzés, lobos e golfinhos, baseia-se em conhecimento íntimo. Entre chimpanzés comuns, indivíduos só vão caçar juntos depois de se conhecerem bem e de estabelecerem uma hierarquia social. É por essa razão que os chimpanzés passam muito tempo em interações sociais e em lutas pelo poder. Quando chimpanzés estranhos se encontram, eles não são capazes de cooperar: comumente gritam uns com os outros, brigam ou fogem o mais rápido que puderem.
Entre os chimpanzés-pigmeus — também conhecidos como bonobos —, as coisas são um pouco diferentes. Bonobos frequentemente usam o sexo para dissipar tensões e cimentar ligações sociais. Em decorrência, e sem surpresa, as relações homossexuais são muito comuns entre eles. Quando dois grupos de bonobos estranhos se encontram, no início eles demonstram medo e hostilidade, e a selva se enche de uivos e gritos. No entanto, não demora para que as fêmeas de um grupo cruzem a “terra de nenhum chimpanzé” e convidem os estranhos a fazer amor e não guerra. O convite normalmente é aceito, e em poucos minutos o potencial campo de batalha está enxameado de bonobos fazendo sexo em todas as posições concebíveis, inclusive pendurados nas árvores de cabeça para baixo.
Os Sapiens conhecem bem esses truques de cooperação. Eles às vezes formam hierarquias de poder semelhantes às dos chimpanzés comuns, enquanto em outras ocasiões consolidam ligações sociais por meio do sexo, assim como os bonobos. Mas o conhecimento pessoal — envolvendo tanto a luta quanto a cópula — não pode se constituir na base de uma cooperação em larga escala. Não se pode resolver a crise de endividamento da Grécia convidando políticos gregos e banqueiros alemães para uma briga de socos ou para uma orgia. Pesquisas indicam que os Sapiens não são capazes de ter relações íntimas (sejam hostis ou amorosas) com mais de 150 indivíduos. O que quer que faculte aos humanos organizar redes de cooperação em massa, não se trata de relações íntimas.
É uma notícia ruim para psicólogos, sociólogos, economistas e outros profissionais que tentam decifrar a sociedade humana por meio de experimentos de laboratório. Por razões tanto organizacionais como financeiras, a grande maioria dos experimentos é conduzida ou por indivíduos ou por pequenos grupos de participantes. Mas é arriscado extrapolar do comportamento de um grupo pequeno para a dinâmica das sociedades de massa. Uma nação com 100 milhões de pessoas funciona de modo fundamentalmente diverso do de um bando com cem indivíduos.
Tome-se, por exemplo, o Jogo do Ultimato — um dos mais famosos experimentos em economia comportamental. Esse experimento é em geral conduzido com duas pessoas. Uma delas ganha cem dólares, que tem de dividir com o outro participante do jeito que quiser. Pode ficar com tudo, dividir ao meio ou entregar ao outro a maior parte. O outro pode ter uma de duas atitudes: aceitar a divisão sugerida ou rejeitá-la totalmente. Se rejeitá-la, ninguém fica com nada.
As teorias econômicas clássicas afirmam que humanos são máquinas de calcular racionais. Elas sugerem que a maioria das pessoas vai ficar com 99 reais e oferecer ao outro participante um real. Prosseguem sugerindo que o outro participante vai aceitar a oferta. Uma pessoa racional à qual se ofereça um real sempre dirá sim. Que lhe importa que o outro jogador fique com 99 reais?
Os economistas clássicos provavelmente nunca saíram de seus laboratórios e salas de conferência para se aventurar no mundo real. A maior parte daqueles que jogam o Jogo do Ultimato rejeita ofertas muito baixas porque as considera “injustas”. Preferem perder um real a serem vistos como babacas. Como é assim que funciona o mundo real, poucas pessoas fazem ofertas muito baixas e oferecem trinta reais ou quarenta reais ao outro jogador.
O Jogo do Ultimato deu uma contribuição significativa para sacudir as teorias econômicas clássicas e estabelecer a mais importante descoberta das últimas décadas no que concerne à economia: Sapiens não se comportam segundo uma lógica matemática fria, e sim de acordo com uma cálida lógica social. Somos governados por emoções. Essas emoções, como vimos, são de fato algoritmos sofisticados que refletem os mecanismos sociais de antigos bandos de caçadores-coletores. Se há 30 mil anos eu o ajudasse a caçar uma galinha silvestre e depois você guardasse para si quase toda a presa, oferecendo-me apenas uma asa, eu não diria a mim mesmo: “Melhor uma asa do que nada”. Em vez disso, meus algoritmos evolucionários iriam me dar um chute, a adrenalina e a testosterona inundariam meu sistema, meu sangue começaria a ferver e eu bateria o pé e gritaria a plenos pulmões. No curto prazo, eu poderia ficar com fome e até estaria me arriscando a levar um soco ou dois. Mas no longo prazo valeria a pena, pois você iria pensar duas vezes antes de me explorar outra vez. Recusamos ofertas injustas porque pessoas que docilmente aceitaram ofertas injustas não sobreviveram à Idade da Pedra.
Observações do comportamento de bandos de caçadores-coletores contemporâneos dão suporte a essa ideia. Em geral são bandos altamente igualitários, o que significa que, quando um caçador volta carregando um veado gordo, todos ganham uma parte. Isso também é verdadeiro em relação aos chimpanzés. Quando um chimpanzé caça um porquinho, os demais membros do grupo se reúnem em volta dele com as mãos estendidas e comumente todos ganham um pedaço.
Em um experimento recente, o primatologista Frans de Waal pôs dois macacos-capuchinhos em duas jaulas adjacentes, de modo que cada um pudesse ver o que o outro estava fazendo. De Waal e seus colegas puseram pequenas pedras em cada jaula e treinaram os macacos a lhes darem essas pedras. Toda vez que um macaco entregava uma pedra recebia comida em troca. No começo, a recompensa era um pedaço de pepino. Os dois macacos gostaram muito e comeram os pepinos com satisfação. Depois de algumas rodadas, De Waal passou à fase seguinte do experimento. Dessa vez, quando o primeiro macaco cedeu uma pedra, ganhou uma uva. Uvas são muito mais saborosas que pepinos. No entanto, quando o segundo macaco deu uma pedra, recebeu uma fatia de pepino. Esse macaco, até então muito feliz com seu pepino, ficou enfurecido. Pegou-o e por um instante olhou incrédulo para ele; depois jogou-o com raiva nos cientistas e começou a saltar e a guinchar ruidosamente. Ele não era nenhum otário.
Esse hilariante experimento (que você pode ver no YouTube), assim como o Jogo do Ultimato, gerou a crença de que os primatas possuem uma moralidade natural e que a igualdade é um valor universal e atemporal. As pessoas são igualitárias por natureza, e sociedades em que prevalece a desigualdade não podem funcionar bem devido ao ressentimento e à insatisfação.
Mas as coisas são realmente assim? Essas teorias podem funcionar com chimpanzés, macacos-capuchinhos e pequenos bandos de caçadores-coletores. Também funcionam bem no laboratório, onde são testadas em pequenos grupos de pessoas. Entretanto, quando se observa o comportamento de massas humanas, revela-se uma realidade completamente diferente. A maior parte dos reinos e impérios humanos foi extremamente desigual, mas muitos foram surpreendentemente estáveis e eficientes. No Egito antigo, o faraó se refestelava em almofadas confortáveis num belo e suntuoso palácio, usando sandálias douradas e túnicas bordadas com pedras preciosas, enquanto lindas serviçais despejavam uvas doces em sua boca. Pela janela aberta ele podia ver os camponeses labutando nos campos em seus andrajos sujos sob um sol impiedoso, e feliz seria o camponês que tivesse um pepino para comer ao fim do dia. Mas raramente eles se revoltavam.
Em 1740, o rei Frederico II da Prússia invadiu a Silésia, dando início a uma série de guerras sangrentas que lhe granjearam a alcunha de Frederico, o Grande, transformaram a Prússia numa grande potência e deixaram centenas de milhares de pessoas mortas, aleijadas ou desamparadas. Os soldados de Frederico eram em geral recrutas desvalidos, submetidos a uma disciplina férrea e exercícios draconianos. Não era de surpreender que esses soldados não estimassem seu comandante supremo. Ao ver suas tropas se agrupando para a invasão, ele disse a um de seus generais que o que mais o chocava naquela cena era que “estamos aqui em perfeita segurança, olhando para 60 mil homens — eles são todos nossos inimigos e não há um só deles que não esteja mais bem armado e não seja mais forte do que nós, e ainda assim todos eles tremem na nossa presença, enquanto nós não temos motivo nenhum para temê-los”. Realmente, Frederico podia observá-los em perfeita segurança. Durante os anos seguintes, apesar de todas as desventuras da guerra, aqueles 60 mil homens armados nunca se revoltaram contra ele — na verdade, muitos o serviram com coragem excepcional, arriscando e mesmo sacrificando suas vidas.
Por que os camponeses egípcios e os soldados prussianos agiram de modo tão diferente do que poderíamos esperar com base no Jogo do Ultimato e no experimento com os macacos-capuchinhos? Porque o comportamento de um grande número de pessoas é fundamentalmente diferente daquele apresentado por um agrupamento menor. O que veriam os cientistas se realizassem o experimento do Jogo do Ultimato com dois grupos de 1 milhão de pessoas cada, em que tivessem de dividir 100 bilhões? Provavelmente eles testemunhariam uma dinâmica estranha e fascinante. Por exemplo, como 1 milhão de pessoas não são capazes de tomar decisões coletivamente, cada grupo teria de fazer brotar uma pequena elite governante. E se uma elite oferecesse a outra 10 bilhões, reservando para si 90 bilhões? Os líderes do segundo grupo poderiam muito bem aceitar essa oferta injusta, injetar a maior parte dos 10 bilhões em suas contas em bancos suíços, enquanto contornavam a rebelião de seus seguidores com uma combinação de punição e recompensa. A liderança poderia ameaçar punir severa e imediatamente os dissidentes, ao passo que prometeria aos submissos e pacientes uma recompensa duradoura no pós-vida. Era isso que acontecia no Egito antigo e na Prússia do século XVIII, e é assim que as coisas ainda funcionam em vários países pelo mundo.
Essas ameaças e promessas não raro são bem-sucedidas em criar hierarquias humanas estáveis e redes de cooperação massivas, enquanto houver quem acredite que elas refletem as inevitáveis leis da natureza ou os mandamentos divinos de Deus, e não apenas intentos humanos. Toda cooperação humana em grande escala baseia-se em última análise na nossa crença em ordens imaginadas. São conjuntos de regras que, a despeito de só existirem na nossa imaginação, acreditamos serem tão reais e invioláveis quanto a gravidade. “Se você sacrificar dez touros ao deus-céu, a chuva virá; se você honrar seus pais, irá para o céu; e se não acreditar no que estou lhe dizendo — irá para o inferno.” Enquanto todos os Sapiens que habitam um determinado lugar acreditarem nas mesmas histórias, todos seguirão as mesmas regras, o que facilitará prever o comportamento de estranhos e organizar redes de cooperação massiva. Sapiens usam com frequência marcas visuais, como um turbante, uma barba ou um terno formal para sinalizar: “Pode confiar em mim, acredito na mesma história em que você acredita”. Nossos primos chimpanzés não são capazes de inventar e disseminar tais histórias, e é por isso que não conseguem cooperar em grande escala.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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