Fotograma do filme As vinhas da ira (1940), de John Ford
A
família Joad deslocava-se lentamente em direção ao Oeste; acima,
pelas montanhas do Novo México, passando os pináculos e pirâmides
do planalto. Galgou a região montanhosa do Arizona e avistou,
através de uma fenda na montanha, aos seus pés o deserto. Uma
guarda de fronteira fê-la parar.
— Aonde
vão?
— Pra
Califórnia — disse Tom.
— Quanto
tempo pretendem ficar no Arizona?
— Só
o tempo que se leva pra passar.
— Trouxeram
alguma planta?
— Não.
Nenhuma.
— Precisamos
passar as suas coisas em revista.
— Mas
eu já diss’que a gente não trouxe plantas.
Um
guarda pregou-lhes um papelzinho no para-brisa.
— OK.
Podem passar, mas andem depressa.
— Tá
certo. É o que a gente vai fazer.
A
família subiu pela encosta, e arbustos entrelaçados a cobriam.
Halbrook, Joseph City, Winslow. E aí começavam as árvores altas, e
os carros cuspiam vapor e engasgavam penosamente na subida. Chegou
Flagstaff, e aí era o topo. De Flagstaff para baixo, através dos
grandes platôs, a estrada estendia-se reta à distância. A água
escasseava, e era comprada a cinco, dez, quinze cents o galão. O sol
torrava as terras rochosas já áridas, e diante da família
estendia-se a serra caótica, de dentes quebrados: a muralha
ocidental do Arizona. E agora ela fugia ao sol e à seca. Viajara a
noite toda, e à noite chegara às montanhas. Trepara na muralha
rasgada pelos despenhadeiros, e a fraca luz de seus faróis errara
nas pedras pálidas que orlavam a estrada. Passou o pico ao anoitecer
e desceu vagarosamente através das ruínas de pedra de Oatman; e ao
chegar a madrugada viu, embaixo, o rio Colorado. A viagem continuou
até Topock e a família teve de estacionar na ponte, enquanto um
guarda de fronteira raspava o papelzinho que tinha sido pregado no
para-brisa. Depois atravessou a ponte e penetrou no deserto selvagem
e rochoso. E conquanto estivesse mortalmente cansada e o calor da
manhã estivesse aumentando, resolveu parar.
O
pai disse:
— Chegamos...
Tamo na Califórnia! — Olharam todos os blocos de pedra que
resplandeciam ao sol, e olharam através do rio a terrível muralha
do Arizona.
— Ainda
precisamos atravessar o deserto — disse Tom. — Precisamos de água
e descanso.
A
estrada corria paralela ao rio, e o dia já tinha avançado bastante
quando os veículos escaldantes chegavam a Needles, onde o rio corria
veloz entre os juncos.
Os
Joad e os Wilson estacaram junto ao rio, e ficaram sentados nos
veículos a olhar o maravilhoso espetáculo da correnteza que fazia
inclinar ligeiramente as hastes dos juncos. À margem do rio havia um
pequeno acampamento, onze tendas rentes à água, junto da relva
encharcada. E Tom debruçou-se pela janela do caminhão.
— A
gente pode parar aqui um pouco, hem?
Uma
mulher obesa, que esfregava roupa num balde, ergueu o olhar.
— Nós
não semo dono disso, moço. Pode ficá, se quisé. Mas não demora e
vem aí um polícia pra olhá as suas coisa, ouviu? — E tornou a
esfregar a roupa ao sol.
Ambos
os veículos estacionaram numa clareira que havia no meio da relva.
As tendas foram retiradas; a tenda dos Wilson foi armada e a lona dos
Joad estendida sobre as estacas ligadas por cordas.
Winfield
e Ruthie caminharam lentamente através dos salgueiros, até os
juncos. Ruthie disse, com excitação abafada:
— Califórnia.
A gente tá na Califórnia!
Winfield
arrancou uma haste e desfolhou-a, e botou a polpa branca na boca e
mastigou-a. Os dois entraram um pouco na água e ficaram parados,
quietinhos, com a água pelas pernas.
— A
gente inda tem que passar o deserto — disse Ruthie.
— Como
é o deserto?
— Não
sei. Eu vi uma vez uma figura com o deserto. Tinha osso por todos os
lados.
— Osso
de gente?
— Acho
que sim. Mas a maioria era osso de boi.
— A
gente vai ver esses ossos?
— Talvez.
Eu não sei. Nós vamo viajar de noite, o Tom disse. Diss’que até
a alma da gente vai secar se viajar de dia.
— É
bem fresco aqui, né? — disse Winfield, e enfiou os dedos dos pés
na areia do fundo do rio.
Eles
ouviram a mãe chamar:
— Ruthie!
Winfield! Voltem depressa. — Atenderam ao chamado e foram voltando
devagar, através das hastes de juncos e dos salgueiros.
Havia
silêncio nas outras tendas. Por um instante, quando os dois veículos
tinham chegado, várias cabeças emergiram de entre as cortinas de
lona, para logo se retirarem. As tendas das duas novas famílias
estavam armadas e os homens estavam reunidos.
Tom
disse:
— Bom,
eu vou tomar um banho. Isso mesmo, é o que vou fazer... antes de ir
dormir. Como vai a avó, depois que dorme na tenda?
— Não
sei — disse o Pai. — Não consegui acordar ela. — Virou a
cabeça em direção à tenda e ficou à escuta por um instante. Uma
voz uivante, choramingas, veio de sob a tenda. A mãe foi depressa
ver o que era.
— Ela
acordou — disse Noah. — A noite toda eu achei que ela ia morrer
no carro. Parece que tá ficando louca.
Tom
disse:
— Que
o quê! Ela tá é muito cansada, demais. Precisa é descansar. Se
não descansar já, não vai durar muito. Quem vem comigo? Vou me
lavar e depois vou dormir o dia todo. — Foi andando e os outros
seguiram-no. Na beira do rio, tiraram a roupa entre os salgueiros e
depois entraram na água e sentaram-se. Muito tempo ficaram sentados
assim, os calcanhares enterrados na areia, e somente as cabeças lhes
apareciam à superfície.
— Puxa!
Bem que eu tava precisando deste banho — disse Al. Pegou um punhado
de areia e começou a esfregar-se com ele. Sentados na água, eles
iam olhando os picos agudos que se chamam Agulhas e as brancas
montanhas rochosas do Arizona.
— E
a gente passou essa bruta montanha — disse o pai cheio de
admiração.
Tio
John mergulhou a cabeça na água.
— Bom,
aqui estamos. Aqui já é a Califórnia, e nem parece ter tanta
fartura assim.
— Precisamos
atravessar o deserto ainda — disse Tom. — E ouvi dizer que isso
não era nada sopa.
Noah
perguntou:
— Vai
ser hoje de noite?
— Que
é que o senhor acha, pai? — perguntou Tom.
— Bem,
não sei, não. Um pequeno descanso não seria nada mau pra todos,
principalmente pra avó. Mas também tô com uma vontade danada de
chegar logo e começar a trabalhar. A gente só tem quarenta dólares,
agora. E é preciso trabalhar, que é pra entrar algum dinheiro.
Sentados
na água, eles sentiam a força da correnteza. O pregador deixou que
seus braços e suas mãos flutuassem à superfície. Os corpos eram
brancos até o pescoço e os pulsos, mas quase castanhos nas mãos e
no rosto, com triângulos morenos entre as clavículas. Esfregavam-se
todos agora, com areia.
E
Noah disse, espreguiçando-se:
— Se
pudesse, ficava era aqui mesmo, dentro d’água. Nunca ter fome, nem
aborrecimentos. Sentado na água, a vida toda, preguiçoso que nem
porco na lama.
E
Tom, que deixara seu olhar errar através do rio até os picos agudos
das montanhas e até as agulhas, disse:
— Nunca
vi montanhas assim. Esta aqui é uma terra de morte. As montanhas são
os ossos da terra. Só queria saber se algum dia encontramos um lugar
onde se possa ganhar a vida, sem se precisar arrastar por rochedos e
pedras enormes. Vi umas fotografias dum lugar onde a terra era plana
e verde, e tinha casinhas brancas, daquelas que a mãe fala. A mãe
dava a vida dela por uma casinha dessas. A gente pensa que uma terra
assim nem existe. Mas eu vi as fotografia.
— Espera
só até chegar na Califórnia — disse o pai. — Aí ocê vai ver
o que é uma terra bonita.
— Mas,
pai! A gente está na Califórnia!
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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