quando
eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância,
lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe,
e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da
morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das
joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai
montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não
houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver
televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da
sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi
sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa.
Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova
geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher
gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de
Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de
qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento,
moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que
foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil
oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de
mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E
plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda
criaremos filhos nas terras de meu avô. Mas se você não gostar da
raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou
de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído
por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármore com
bidés, vários salões com espelhos venezianos, estátuas,
pé-direito monumental e telhas de ardósia importadas da França. Há
palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou
estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para
Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de
banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu
vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos,
cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o
casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o
piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a
fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o
trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e
consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno
levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de
me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz
da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia.
Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como
quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser
taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não
sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que
esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes
com meu palavrório. Mas aqui só há homens adultos, quase todos
meio surdos, se houvesse senhoras de idade no recinto eu seria mais
discreto. Por exemplo, jamais falaria das putinhas que se acocoravam
aos faniquitos, quando meu pai arremessava moedas de cinco francos na
sua suíte do Ritz. Meu pai ali muito compenetrado, e as cocotes
nuinhas em postura de sapo, empenhadas em pinçar as moedas no
tapete, sem se valer dos dedos. A campeã ele mandava descer comigo
ao meu quarto, e de volta ao Brasil confirmava à minha mãe que eu
vinha me aperfeiçoando no idioma. Lá em casa como em todas as boas
casas, na presença de empregados os assuntos de família se tratavam
em francês, se bem que, para mamãe, até me pedir o saleiro era
assunto de família. E além do mais ela falava por metáforas,
porque naquele tempo qualquer enfermeirinha tinha rudimentos de
francês. Mas hoje a moça não está para conversas, voltou amuada,
vai me aplicar a injeção. O sonífero não tem mais efeito
imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio
de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito
entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O
médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me
diga alguma coisa. Um padre chegará para a visita aos enfermos,
falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene
na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de
cair no sono. E a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu
topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as
profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.
Chico
Buarque de Holanda, in Leite derramado
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