domingo, 13 de outubro de 2019

A esfola da calúnia

Numa série de verrinas firmadas com a assinatura de um coronel do Exército, membro do Senado brasileiro, e dadas a lume em muitos números consecutivos do nosso maior órgão de publicidade, se me atirou à porta um montão de lixo.
Não me admira a mim que invista de novo comigo a velha croia, a esquálida rameira dos podres amores dos políticos da terra, a calúnia impenitente na sua sífilis, gafeira cuja virulência dizem que requinta no sangue do caboclo.
O que me custaria a crer, é que, ainda numa época de envilecimento geral, como esta, possa ocupar a eminência de tais honras a criatura, cuja honra se estampa nessas vilíssimas diatribes, que torpezas e asneiras tais saiam, com efeito, de uns punhos largamente agaloados, ou da venerável cadeira de um senador.
Não posso acreditar que essas cacaborradas impantes de ódio e brutalidade sejam daquele mesmo representante do Amazonas, que, no Senado, onde nos defrontávamos um com o outro, escutou, presente e a pé quedo, sem me atalhar com um aparte, os meus cinco ou seis discursos contra o governo atual daquele Estado. Chegavam-me aos ouvidos, é verdade, as suas ameaças, rosnadas nos corredores. Mas a sessão legislativa durou ainda meses, sobreveio o meu projeto de intervenção no Amazonas, deparando-lhe novo ensejo, não menos azado, para uma desforra solene, e, contudo, as câmaras se encerraram, sem que o bravo militar ousasse tentá-la.
Tudo isso que a minha palavra inflamada lhe dizia de frente a frente, ouviu-o mudo como um canhão encravado. Embatucou todo aquele tempo, quando podíamos liquidar ali, de rosto a rosto, o assunto. Só agora é que viria puxar banzé na imprensa? Só depois desta hibernação de arganaz é que sacudiria, agora, o pelo, sentindo, ao vibrar de algumas frases numa das minhas conferências recém-publicadas, o calor, que lhe não chegou às veias com as longas explosões da minha indignação, lançada às suas faces, durante horas e horas, de uma para outra cadeira, no estreito hemiciclo do Senado? Esses estímulos de rixador, insensíveis à pertinácia dos meus discursos, à sua veemência, ao ataque presencial, à direta audição do orador, à provocação da sua voz, do seu tom, do seu gesto, só hoje é que haviam de espertar, à mera inspeção de três ou quatro linhas acidentarias acerca do Amazonas num vasto estudo sobre as misérias do hermismo? Ou será que a braveza dos descendentes parlamentares dos autóctones das margens do rio Negro, amestrados em política na escola das tartarugas, revista a concha do jabuti, que não se mexe, quando lhe tomba o pau em cima, até que o estadulho apodreça nas costas?
Não, não pode ser. Por mais que me chamem a buscar a solução do estranho caso nas curiosidades e maravilhas da história natural dos reptis aplicada à moral das repúblicas, não acabei comigo, até agora, encabeçar-me de que o ferrabrás dessas grotescas pasquinadas seja a mesma consumada imagem da surdimudez, que, por tantas sessões, me escutou, sem tugir, nem mugir, como se um raio o tivesse fulminado na sua curul, ou uma vareta perdida o atravessasse, ali, dos gorgomilos ao poisadoiro.
Rui Barbosa, in Antologia

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