Para
Luiz Schwarcz e Maria Emília Bender
A
primeira frase da crônica é quase sempre a mais difícil, mas,
quando as palavras aparecem no papel, a mão que segura a caneta fica
mais leve e envereda para um lugar desconhecido…
No
entanto, basta surgir um inseto para mudar toda a história: o
movimento da mão é interrompido pelo intruso, que voa em círculos
e zoa com insistência, uma picada no pescoço ou no braço pode
acabar com a alegria de escrever uma crônica, mesmo sabendo que vou
reescrevê-la quatro ou sete vezes; talvez seja melhor espantá-lo
com uma revista, ou esperar que ele se canse de girar e zumbir como
um louco neste espaço pequeno.
Pode
ser uma fêmea, não sei precisar o sexo dos insetos; não é
varejeira, nem abelha ou besouro comum, tem um olhar estranho, e as
asas ambarinas revelam uma delicada trama geométrica, que lembra uma
teia de aranha.
Deixo
a caneta na mesa, pego ao acaso uma revista e tento afugentar o
intruso: que ele nos deixe em paz, eu e a ideia da crônica, a mão
direita e as palavras, a razão e a emoção, mas o inseto parece
zombar de tudo isso e descai do teto numa investida ousada que roça
minha testa. Agora está claro que ele quer me perturbar, não há
mais silêncio, já me desconcentrou, apagou a ideia da crônica e me
deixou como um idiota, segurando uma revista de arquitetura com belos
projetos em Guarulhos e no Rio, Artigas e Reidy, os olhinhos cor de
ferrugem, patas pretas e um ferrão de fogo, se esse pequeno monstro
me picar, adeus à crônica e à leitura de Gógol.
Apago
a lâmpada, talvez ele se acalme na penumbra, às vezes a claridade é
nociva e a opacidade, necessária. Mal consigo enxergá-lo, é apenas
uma serpentina escura dançando no espaço, sigo os movimentos desse
voo bêbado e hostil, tento entender meu inimigo e perdoá-lo, antes
que a revista o golpeie e ele caia no chão, e logo uma pisada sem
piedade e um chute para o pequeno jardim.
Acho
que me entendeu, pois voa em silêncio, afasta-se de mim, procura em
vão a luz da lâmpada e depois ronda a porta estreita, ali perto da
romãzeira florida e da liberdade.
O
voo lento pode ser uma trégua, e, pensando bem, o inseto não é tão
ameaçador assim; recordo o trançado do desenho das asas, agora os
olhinhos perderam o brilho, o ferrão é invisível na penumbra. De
repente, um voo rápido em espiral, e a três palmos do assoalho ele
se equilibra no ar, helicóptero perfeito, e uns segundos depois
navega na horizontal até um dos cantos do quarto, onde se refugia
numa caixa de papelão.
Acendo
a lâmpada, me aproximo da caixa e vejo meu ex-inimigo no centro de
uma fotografia antiga. Quieto, ferrão e asas recolhidos, repousa no
rosto de uma mulher ainda jovem, que sorri para a lente do fotógrafo.
Pego com cuidado a foto, saio do quarto e, com um sopro, o inseto
some na tarde morna. Minha mãe me abraça numa manhã de 1960: nós
dois aninhados no banco da praça da Matriz, aonde me levara para ver
o aviário e conversar com os pássaros. Lembro-me de que ela morreu
há quatro anos, e devo essa lembrança ao inseto estranho e
sentimental, que me roubou a ideia de uma crônica, mas me deu outra.
Agora,
quando já escurece, é pegar a caneta e escrever a primeira frase,
quase sempre a mais difícil…
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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