No
posto de saúde, Sidónio Rosa lava as mãos, olhos distantes, alheio
ao rebuliço que reina no exterior. Acabara de prestar os primeiros
socorros ao administrador Suacelência. Não passara uma hora desde
que o chefe da administração tinha dado entrada no posto em estado
crítico. No princípio, Sidónio receou tratar-se de mais um caso de
meningite. Mas logo recitificou o diagnóstico: os sintomas eram
típicos de um envenenamento: salivação, náuseas, sudação
incontrolada.
— Alguém
vá ao lado dele para o amparar nos solavancos.
Inanimado
no banco traseiro da carrinha que o levará para o hospital da
cidade, Suacelência ainda sofre de convulsões que lhe projetam os
olhos fora do rosto. Eis o avesso do destino: o homem que não queria
transpirar está-se afogando em suores.
— Ele
vai sobreviver, Doutor?
A
voz ganha eco no pequeno cubículo onde o médico muda de roupa. Quem
fala parece uma miúda, quase sem idade. Mas, depois, Sidónio
reconhece: ela é Esposinha, a delicada esposa de Suacelência,
acanhada demais para figurar como primeira-dama. Entende-se por que
lhe deram aquele nome. Ela é apenas a esposa de alguém.
— O
meu marido abusou da dose daqueles pós que o senhor lhe mandou
tomar…
— Mas
quais pós?
— Aqueles
pós de raiz que o senhor lhe receitou ontem. Para acabar com a
transpiração.
O
médico não responde. A fúria rouba-lhe a fala. Alguém fizera uso
do seu nome para que Suacelência se auto-envenenasse. Sem se
despedir de Esposinha, o estrangeiro se apressa pelos caminhos que
desembocam no lar dos Sozinhos. Pensa para nenhuns botões: o
Administrador tinha sido envenenado e não tardaria que o seu nome
estivesse envolvido na tentativa de assassínio. Daí a sua pressa em
encontrar Dona Munda. Encontra-a a sair de casa, envergando luto.
— Onde
vai, Dona Munda?
— Vou
apresentar condolências a Dona Esposinha.
— Suacelência
ainda não morreu.
— Para
mim já está morto.
Altiva,
Dona Munda prossegue caminho, fingindo não escutar o português que
suplica que regresse. De vestido preto, move-se esbelta, passo curto,
parecendo ter mais calcanhares que sapatos. O médico segue-a e
puxa-a pelo braço. Insiste que ela regresse a casa. Munda não
resiste, corpo encostado ao do médico enquanto ele a vai arrastando.
— O
senhor está a dançar comigo, Doutor?
— Eu
tenho uma pergunta muito séria para si: quem foi que levou esses pós
venenosos a Suacelência?
— Entremos,
Doutor. Falamos dentro. O senhor está fora de si.
Caminham
de braço dado, semelhando um casal vindo da noite. Assim que entram
em casa, o português enfrenta a mulher:
— Agora,
olhe nos meus olhos e diga: a senhora envenenou o homem?
— Suacelência
não é um homem.
— Estou
desgraçado! A senhora não só cometeu um crime como me incriminou
também a mim.
O
médico está irreconhecível. Bate com a porta e regressa à rua com
as mãos erguidas, dedos cruzados por trás da nuca. Se alguém
cruzar com ele na Vila acreditará que ele se converteu num
tresandarilho.
Dona
Munda ainda espera que ele retorne, para terminar a mal começada
conversa. Porém, o português apenas regressa no dia seguinte. Manhã
cedinho, entra sem bater, surpreendendo Munda deitada no chão do
corredor, dormindo enroscada junto à porta do quarto de Bartolomeu e
ainda envergando o mesmo cerimonioso vestido preto.
— Dona
Munda? Está tudo bem?
Ela
se estremunha, emenda o corpo, ajeita os cabelos, corrige as roupas.
— Aconteceu
alguma coisa? A senhora perdeu os sentidos?
— Eu
durmo sempre assim…
— Como
sempre assim?
Dormia
todas as noites derramada à porta do quarto de Bartolomeu, na
ansiedade de escutar um sinal do estado do marido.
— Afinal,
Dona Munda. Tanta raiva, tanta raiva?!
— Por
favor, não diga nada ao fulano.
— Fique
tranquila.
— Prometa-me
uma coisa, Doutor. Se Bartolomeu morrer, se ele partir…
— Ninguém
vai partir, Dona Munda. A única pessoa que vai partir sou eu.
— Vai
embora, como? De vez?
— Volto
para a minha terra. Tudo isto acabou para mim.
— O
senhor não nos pode deixar!
— Já
aconteceu, já deixei, venho só me despedir.
— Sobre
aquilo de ontem, eu nem acabei de lhe explicar…
— Não
preciso que me diga nada, eu vou-me embora.
O
homem atravessa a porta de saída, debruça-se para pegar nas malas
que esperavam no pátio. A voz de Munda assume gravidade nunca
escutada antes:
— E
Deolinda?
— Havemos
de nos encontrar um dia.
— Não.
Vocês nunca mais se vão encontrar.
— O
mundo é pequeno, Dona Munda.
— Você
não entende? Deolinda está morta!
Um
arco tenso toma conta das costas do visitante.
As
malas tombam. As mãos do médico esvoaçam como aves cegas, numa
dança desencontrada. O corpo quer falar, não encontra voz nem
gesto. Por fim, consegue vencer a surpresa que o inundou e balbucia:
— A
senhora inventou agora essa mentira apenas para me reter aqui?
Munda
não escuta. Ela está misteriosamente tranquila, as suas palavras já
perderam toda a pretensão. Nesse tom mortiço, prossegue:
— Deolinda
morreu antes de você chegar cá. Morreu quando fazia um aborto, do
outro lado da fronteira.
— Não
pode ser, não pode ser.
— Ela
estava grávida desse seu amigo, o administrador Suacelência.
O
veneno que Munda tanto lhe pedira não era, como ele sempre imaginou,
para matar o marido. Era para se vingar de Suacelência.
O
barulho pesa, mas o não escutar é que cansa. Sidónio, naquele
momento, preferia a exaustão de nada mais escutar. Talvez por isso
tenha tomado a decisão de se retirar para a pensão. Dona Munda
segue atrás dele, silenciosa como num cortejo fúnebre. Quando
Sidónio entra no quarto, ela entra junto com ele. Depois pede:
— Deixe-me
ficar aqui esta noite. Fico num canto, quieta, caladinha, sem
existir.
O
médico não escuta. A mágoa roubou-lhe os sentidos. A conclusão
para ele era tão evidente quanto insuportável: o casal o enganara
da maneira mais infame. Tinham mentido sobre o sagrado: a morte da
própria filha. E, ainda pior, tinham aproveitado a ocasião para
extorquir dinheiro e apoios.
— O
tempo vai passar, o senhor vai esquecer.
No
princípio, a voz de Munda é, para Sidónio, apenas uma variação
do silêncio. Ela vai prosseguindo, em intentos de consolo:
— O
tempo é o lenço de toda a lágrima.
E
acrescenta o ditado: o esquecimento é a derradeira morte dos mortos.
As palavras de Munda apenas reiteram a sua decisão: voltará hoje
mesmo à sua terra, abandonará Vila Cacimba para nunca mais voltar.
Estendido na cama, vai ruminando angústias como o guerreiro que,
depois da derrota, ainda afia o gume da espada. Aos poucos, porém,
sobrevém-lhe um abatimento, e ele se afunda numa neblina. Antes de
adormecer ainda escuta a mulher:
— O
senhor não conhece o tempo, não sabe como o tempo é o único
remédio.
O
médico não responde. Está deitado, olhando fixamente a ventoinha
avariada, pendendo do tecto. Deixa que se instale nele um pesado
silêncio como um cortinado escurecendo o mundo. E adormece sentindo
o ranger da cama. Vagamente se apercebe de que um outro corpo se
estende a seu lado. Como em sonho, os braços de Munda lhe rodeiam o
pescoço. Mas já não são braços. Apenas lençóis brancos
esvoaçam como aves de arribação por entre o espesso céu de Vila
Cacimba.
Talvez
seja a espessura desse céu que faz os cacimbeiros sonharem tanto.
Sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino
que é sempre tardio e pouco.
Mia
Couto,
in Venenos de
Deus, Remédios do Diabo
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