segunda-feira, 6 de maio de 2019

A noiva que esperava a trágica notícia

A noiva entrou na igreja. Os convidados se ergueram.
Todos queriam vê-la. A maioria que estava ali não acreditava que ela estivesse se casando. Todos a consideravam solteira. Irreparável. Não porque não tivesse encontrado partido.
Ao contrário, tivera muitos. Recusara todos.
Por que recusava? Perguntavam. Por quê?
O órgão tocava a Marcha nupcial. Ela caminhava de braços dados com o pai. Ou seria o padrasto? Não se sabia, apenas se comentava. Eles tinham chegado há anos e se instalado na casa de paredes rubras, estilo vila italiana. Enorme. Nunca contaram nada da vida. A ninguém. Seriam casados? Ele tão mais velho do que a considerada mãe. Carioca de olhar forte e atrevido. Irônica, unhas pintadas com cores brilhantes e o sotaque arrastado. Puxando no S sibilante.
O homem que levava a trágica notícia deixou sua casa.
Exatamente quando a noiva entrou na igreja e começou sua caminhada em direção ao altar. O homem que levava a trágica notícia sabia que não precisava esperar. Chegaria no momento exato. Fizera o trajeto muitas vezes. Cronometrara o percurso. Como os bandidos de filmes que planejam um grande golpe. Ele tinha visto muitas vezes o filme de Stanley Kubrick, O Grande Golpe. The killing.
Ela, com a cauda do vestido rastejando. Caminhava compassada, naquele estranho passo ritmado pela Marcha nupcial. Caminhava, conduzida pelo pai. Seria o pai? E a mãe, de que cor pintara as unhas nesse dia?
Não se podia ver as mãos da mulher que sorria. Enigmaticamente. Todos consideravam o sorriso dessa mulher um mistério. Sua vida, uma incógnita. Sabia-se apenas que gostava de dormir. Até tarde. Muito tarde. E que odiava barulho na casa, enquanto não despertasse.
O homem que levava a trágica notícia disparava pelas ruas.
Um pouco inseguro.
Teria calculado com precisão. O trajeto?
Algumas mulheres choravam. Discretamente. Não muito, o necessário em casamentos. A mãe, uma delas. Por que a mãe estaria chorando?
O homem que levava a trágica notícia estava parado. Num sinal.
Olhava o relógio.
O noivo desceu alguns degraus para receber, sua futura mulher, companheira para a vida e a morte. Na dor e na alegria. Ele tremia um pouco. Olhou para as mãos da sogra. De que cor ela teria pintado? As unhas.
E seria verdade aquilo que diziam? Ela teria posado nua. Para uma revista? Ficou a imaginá-la nua. Tinha coxas grossas e nenhuma celulite. Entrara, inadvertidamente, no quarto dela. Um dia. Ela, de combinação rosa. De cetim. Sua pele era lisa. Devia ser macia. Desejava a mãe ou a filha?
A Marcha nupcial ecoava na igreja iluminada. Decorada com flores e velas e tapetes. A noiva não desejara música moderna. Pedira Mahler, não foi possível. Por quê?
O homem que levava a trágica notícia acelerava. O carro.
Ansioso, desconfiado de si mesmo. Suponha que soubesse o mistério. Da vida da mulher que pintava as unhas, gostava de dormir, queria ter um filho e exibia um sorriso amplo. Escancarado, prometedor. Prometedor do quê?
Um guarda mandou que ele encostasse.
Ele se desesperou.
O guarda se aproximou.
Ele explicou: Preciso levar a trágica notícia. A um casamento. Qual? Perguntou o guarda. Mais curioso do que desconfiado. Achando que o homem estava mentindo. Ele contou.
O guarda sacudiu a cabeça.
Fora de si gritou: “Vamos logo, temos de ir. Te acompanho, abro caminho”. Tocaram pela avenida. Sem respeitar sinais. Quase atropelando pessoas descuidadas. Conduzindo velozmente. A trágica notícia.
O noivo e a noiva subiram para o altar. Contemplaram o padre. O padre olhou para a mãe, ou aquela que se supunha fosse a mãe. A mulher fez que sim com a cabeça. E se ele, noivo, tivesse posto? As mãos nas coxas delas. Naquele dia. A mãe repetiu o sim. Com a cabeça.
Por que teria feito sim? Dependia dela o quê? Qual o consentimento que o padre buscava? O pai não percebeu. Diziam que ele nunca percebia nada. Sua mulher era impenetrável, ambígua.
O carro parou na porta da igreja. O homem que levava a trágica notícia entrou. Correndo pela nave.
Pisando o mesmo tapete onde minutos antes a noiva tinha passado com o pai. A mãe, vendo o homem que trazia a trágica notícia chegar apressado, compreendeu. Será que ela o conhecia? Percebeu também que talvez pudesse. Comprar agora aquela casinha com que sonhava tanto, cercada por jardins.
O homem chegou ao noivo, cochichou. O noivo empalideceu. Desmaiou. Correram os homens e um médico (“Há um médico nesta igreja?” Havia).
O homem da trágica notícia cochichou. Ao ouvido do padre. Que empalideceu e se retirou. Para a sacristia. Irritado, surpreso, temendo a Deus, tirou os paramentos. Mandou que apagassem luzes. E velas. Retirassem as flores e jogassem. No meio da praça. Mandou que todos se retirassem. O órgão emudecesse. Sua igreja jamais passara por tal situação.
O homem que trouxera a trágica notícia abraçou a mãe. E por que abraçava? Quem era ela?
E olhou-a nos olhos.
E ela soube. Sorriu e cuspiu sobre o noivo.
A noiva, paralisada. Ficou. Sozinha no escuro da igreja.
Deus também tinha abandonado. O sacrário.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

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