Depois
de uma temporada como a que tive no Zum-Zum, nada melhor que esta
moleza, este vago tédio em que me encontro, específicos de uma
estação de águas. Cheguei, além do mais, asilando uma gripe que
se não é a “russa”, anda por perto. Estou derreado. Servem-me
as águas a domicílio, numa garrafa vestida de uma linda fantasia de
palhinha, um negócio para o baile do Municipal: eu, astênico,
vagotônico, no fundo feliz de me sentir de novo disponível. Cai-me
bem, de quando em quando, uma doença. É, não só, de certo modo,
um treino para a morte, como um grande pretexto para a meditação. O
tempo, que se faz tão rápido nesta minha quadra da existência,
como que se relaxa. Fica tudo mais sensível, mais acústico. Esse
binômio “gripe e estação de águas” é muita felicidade junta.
Sinto que me recuperarei de modo total, e com muita sabedoria.
E
uma certa tristeza.
*
* *
Tenho
figos no quarto. Se acordo de madrugada e sinto fome, como um figo.
Ou chupo, em solo mineiro, uvas paulistas, tal um herói de
Kazantzakis. E antes de voltar à cama, e aos braços de mme.
de Rênal, com quem na pele de Julien Sorel, traio a minha bem-amada,
ainda respiro à janela o ar das Alterosas. Em que país, fosse mesmo
escandinavo, poderia eu ver três senhorazinhas encantadas passarem
pela rua, às duas da manhã, tremulando valsas em bandolins
afinadíssimos? Em que ficção, fosse mesmo japonesa, poderia eu ler
uma cena destas? Ó prosadores destas Minas que sois amigos meus: por
que me ocultastes isto tanto tempo?
*
* *
Hoje
fui ao parque: melhor dizer Parque, assim com maiúscula. Passeei
minha convalescença por entre outras senhorazinhas encantadas, mas
desta vez encantadas de serem aquáticas, de estarem trafegando assim
por entre a flora bem-comportada do jardim, parando para beber as
águas e fazer uma fofoca rápida; senhorazinhas, algumas, ainda
esperançosas, justiça lhes seja feita, a julgar pelas calças
compridas que portam, mais justas que as da Mariazinha do Posto 5.
Bravo,
senhoras minhas! Nada de entregar os pontos. Bebei na Fonte Duque de
Saxe, lavai o rosto na da Beleza e os olhos com o colírio alcalino
da Viotti. Em seguida, fazei massagens de duchas, e se necessário
for, metei um Pitanguy. E em desespero de causa ide para o Jardim
Botânico em dia de chegada de navio holandês. Há sempre um viúvo
rico dos Países-Baixos correndo o mundo, disposto a negociar os
dólares da própria solidão. Ora, o Jardim Botânico, para um
flamengo, é atração turística obrigatória. Sentai-vos num banco
com o vosso tricô e ao vê-lo que se aproxima, gordinho e rubicundo,
pedi-lhe fogo. Se ele não fumar, isso já é assunto bastante para
um passeio juntos. Não paga dez. À noite recebereis uma cesta de
tulipas e um mês depois estareis em Amsterdã, dona de casa entre
canais, tomando a vossa genebra bem gelada e nem lembrando mais deste
país subletrado e subdesenvolvido. Eu tive uma prima idosa que casou
assim: e ela era mais feia que a necessidade. Casou-se com um suíço.
A linha é mais ou menos essa...
Ontem
minha mulher foi assistir, no circo local, a uma pantomima sobre
Caryl Chessmann, o famoso Bandido da Luz Vermelha, de Los Angeles,
cuja execução na câmara de gás, há uns quatro anos, deixou o
mundo em suspenso. Contou-me ela que, num determinado momento, a
mulher do bandido vai visitá-lo na prisão e ao vê-lo pergunta-lhe,
asssim mesmo à gaúcha:
-
Então, como vais?
Ao
que Chessmann responde:
-
Encarcerado, como vês...
*
* *
Como
existe esperança no mundo... Que beleza! É de ver o movimento que
vai por estas fontes, mesmo agora, já um pouco fora de estação.
Uma trançação constante, cada um com o seu copinho de plástico
onde há escrito: “Lembrança de Caxambu.”
E
as águas balsâmicas desengurgitam figados cirróticos, acordam
vesículas preguiçosas, dissolvem litíases antigas. É a saúde!
Uma esticada de mais dez anos, mais cinco, mais seis meses, mais um
mês, mais 15 dias... - poxa! - mais uma semaninha só, tá?
A
Velha da Prestação não tem outro jeito:
-
Tá.
*
* *
Mas
ao vê-la sentada lá no alto do outeiro, com o maxilar apoiado nas
falanges, numa atitude de Pensador de Rodin a gente sente que
a Morte está chateada da vida. Assim não é vantagem, com essas
águas... E ela fica, pensando que não há nada como se ter
dinheiro.
O
que ainda lhe vale é que para a paisanada local, pobre e mal
nutrida, a carência de iodo nas águas da região é bócio certo.
De qualquer modo, para ela não deixa de ser uma esperança…
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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