Entre
os ensaios biográficos reunidos em Mecanismos internos, de J.
M. Coetzee (Companhia das Letras, tradução de Sergio Flaksman), um
deles – o de número 15 – me serve como guia para a leitura de
todos os outros. “William Faulkner e seus biógrafos”, se chama.
É como biógrafo, e não como um ficcionista, que Coetzee escreve
seus ensaios. Mas, ao falar de Faulkner e da luta inglória dos
biógrafos para capturá-lo, fala, também, de si mesmo e de como
Faulkner deles se esquiva.
Faulkner
é um problema para os biógrafos. A relação que estabelecem com
ele repete a estrutura de Palmeiras selvagens, romance que
publicou em 1927, composto de duas narrativas paralelas que jamais se
cruzam. Na primeira delas, um casal foge de tudo para viver um amor
exclusivo. Na segunda, um presidiário idoso conquista a liberdade
para ajudar em um resgate. Assim também, de um lado se desenrolou a
vida real de William Faulkner. De outro, seus biógrafos produzem
narrativas que se esforçam para narrá-la. Os dois lados nunca se
tocam.
Coetzee
cita o caso do biógrafo Jay Parini, para quem as bebedeiras do
Faulkner seriam, de algum modo, úteis, abrindo “um tempo de
descanso para a mente criadora”. Reage, com firmeza, ao elo entre
alcoolismo e criação: “É da natureza dos vícios serem
incompreensíveis para quem os vê de fora”. Acredita Coetzee que
nenhum biógrafo conseguiu explicar o alcoolismo de Faulkner e que
todas as hipóteses por eles oferecidas não passam de “um
empreendimento equivocado”.
Ocorre
que não é só um vício (o alcoolismo) que é inexplicável. Uma
vida, qualquer vida, é inexplicável também, mas essa
impossibilidade, em vez de abater os biógrafos, os estimula. Coetzee
critica, com razão, aqueles pesquisadores que, submissos à teoria
psicanalítica, fizeram de suas biografias instrumentos banais de
interpretação. Frederick Karl, por exemplo, chega a afirmar que, se
o álcool fosse removido da vida de Faulkner, “é muito provável
que o escritor não existisse”. Ainda mais exagerado, Jay Parini
reduz um romance fabuloso como Enquanto agonizo a “um ato
simbólico de agressão de Faulkner contra a própria mãe”.
Coetzee não esconde sua fúria quando Frederick Karl conclui que a
caligrafia impecável de Faulkner é “um indício de uma
personalidade anal”.
Critica,
com razão, a “boa dose de questionável psicologismo” que
alimenta muitas biografias. Prefere, por exemplo, os momentos em que
Parini abandona os aparatos teóricos e simplesmente lê Faulkner,
nele encontrando um escritor de energia inesgotável, que “progredia
como um boi avançando pela lama, puxando todo um mundo atrás de
si”. William Faulkner é, provavelmente, o mais opaco narrador
norte-americano do século XX. Na análise de sua obra, o recurso dos
paralelos sempre fracassa. Isso não significa dizer que sua vida e
sua obra sejam intocáveis nem que Faulkner tivesse razão quando,
defendendo sua solidão, sugeriu para si mesmo um epitáfio lacônico:
“Produziu seus livros e morreu”.
Os
ensaios de J.M. Coetzee reunidos em Mecanismos internos não
se submetem às regras da biografia clássica. Ainda assim, lidam,
todo o tempo, com materiais biográficos. Tanto é possível tirar um
bom proveito da perspectiva biográfica, que seu esforço resultou em
um livro inspirador. Gênero fronteiriço entre o ensaio, a história
e a ficção, a biografia se define, antes de tudo, por um dilema
ético. Alguns o resolvem adotando o caminho mais preguiçoso da
“biografia romanceada”, em que se fica com o pior das biografias
e com o pior das ficções.
Mesmo
sabendo que produz uma obra literária – a biografia é um gênero
literário –, o biógrafo não pode se esquivar da luta com seu
biografado. Precisa enfrentá-lo. Coetzee faz isso quando observa que
a lealdade é um tema tão forte na vida de Faulkner quanto em sua
literatura. Surpreende-se, porém, com a lealdade extrema do escritor
a uma “mulher gastadeira, parentes sem tostão, contratos
desvantajosos com os estúdios”, defeitos que ele suportava com
tenacidade – até em detrimento de sua arte –, e neles vê uma
“lealdade enlouquecida, ou fidelidade enlouquecida”. Também
Coetzee arrisca um olhar singular sobre Faulkner e sua obra, sem
pretender, contudo, que suas observações esgotem a alma do escritor
e seus livros.
Pisa
Coetzee, com grande delicadeza, na fronteira em que os biógrafos
habitam. De um lado, o biógrafo deve cobiçar a objetividade e a
distância; de outro, não tem o direito de esconder a perspectiva
particular com que observa, ordena e classifica seu objeto. De nada
adianta fugir para o reino supostamente protegido da “biografia
romanceada”; de nada serve, ao contrário, acreditar que os fatos –
bem apurados, bem pesquisados, investigados “até o fim” –
falarão por si. Fatos não falam por si; eles estão sempre mediados
pela voz de um autor. A ética do biógrafo, portanto, não está na
pretensão enlouquecida de capturar a alma do outro; mas também não
está na desistência desse projeto. Parece estar entre os dois:
buscar a vida objetiva sabendo que, sempre, resvalará na ficção;
perseguir “toda a verdade” com a consciência de que, no fim,
ficará apenas com partes muito frágeis dela.
Protesta
Coetzee contra a tese de Frederick Karl segundo a qual os romances
menos importantes de Faulkner trazem melhores revelações
biográficas que seus grandes romances. Na arte da biografia, tanto a
afirmação peremptória quanto a negação peremptória conduzem ao
mesmo impasse. Uma coisa fundamental não falta ao J.M. Coetzee
biógrafo: a delicadeza. Só com ela um biógrafo consegue se
aproximar um pouco mais de seu biografado. Nem santificá-lo nem
destruí-lo. Não aprisioná-lo em uma suposta “história
verdadeira”, mas também não dissolver sua vida na borra adocicada
– e fatal – do “romance”.
Acariciar
a face do biografado e envolvê-la em um olhar frágil e parcial, eis
tudo o que um biógrafo pode fazer. A consciência desse precário
limite é a ética do biógrafo. Resta lembrar, a propósito, a
advertência de William Faulkner: “Todos nós malogramos quanto a
alcançar nosso sonho de perfeição”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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