sábado, 13 de abril de 2019

A ética do biógrafo

Entre os ensaios biográficos reunidos em Mecanismos internos, de J. M. Coetzee (Companhia das Letras, tradução de Sergio Flaksman), um deles – o de número 15 – me serve como guia para a leitura de todos os outros. “William Faulkner e seus biógrafos”, se chama. É como biógrafo, e não como um ficcionista, que Coetzee escreve seus ensaios. Mas, ao falar de Faulkner e da luta inglória dos biógrafos para capturá-lo, fala, também, de si mesmo e de como Faulkner deles se esquiva.
Faulkner é um problema para os biógrafos. A relação que estabelecem com ele repete a estrutura de Palmeiras selvagens, romance que publicou em 1927, composto de duas narrativas paralelas que jamais se cruzam. Na primeira delas, um casal foge de tudo para viver um amor exclusivo. Na segunda, um presidiário idoso conquista a liberdade para ajudar em um resgate. Assim também, de um lado se desenrolou a vida real de William Faulkner. De outro, seus biógrafos produzem narrativas que se esforçam para narrá-la. Os dois lados nunca se tocam.
Coetzee cita o caso do biógrafo Jay Parini, para quem as bebedeiras do Faulkner seriam, de algum modo, úteis, abrindo “um tempo de descanso para a mente criadora”. Reage, com firmeza, ao elo entre alcoolismo e criação: “É da natureza dos vícios serem incompreensíveis para quem os vê de fora”. Acredita Coetzee que nenhum biógrafo conseguiu explicar o alcoolismo de Faulkner e que todas as hipóteses por eles oferecidas não passam de “um empreendimento equivocado”.
Ocorre que não é só um vício (o alcoolismo) que é inexplicável. Uma vida, qualquer vida, é inexplicável também, mas essa impossibilidade, em vez de abater os biógrafos, os estimula. Coetzee critica, com razão, aqueles pesquisadores que, submissos à teoria psicanalítica, fizeram de suas biografias instrumentos banais de interpretação. Frederick Karl, por exemplo, chega a afirmar que, se o álcool fosse removido da vida de Faulkner, “é muito provável que o escritor não existisse”. Ainda mais exagerado, Jay Parini reduz um romance fabuloso como Enquanto agonizo a “um ato simbólico de agressão de Faulkner contra a própria mãe”. Coetzee não esconde sua fúria quando Frederick Karl conclui que a caligrafia impecável de Faulkner é “um indício de uma personalidade anal”.
Critica, com razão, a “boa dose de questionável psicologismo” que alimenta muitas biografias. Prefere, por exemplo, os momentos em que Parini abandona os aparatos teóricos e simplesmente lê Faulkner, nele encontrando um escritor de energia inesgotável, que “progredia como um boi avançando pela lama, puxando todo um mundo atrás de si”. William Faulkner é, provavelmente, o mais opaco narrador norte-americano do século XX. Na análise de sua obra, o recurso dos paralelos sempre fracassa. Isso não significa dizer que sua vida e sua obra sejam intocáveis nem que Faulkner tivesse razão quando, defendendo sua solidão, sugeriu para si mesmo um epitáfio lacônico: “Produziu seus livros e morreu”.
Os ensaios de J.M. Coetzee reunidos em Mecanismos internos não se submetem às regras da biografia clássica. Ainda assim, lidam, todo o tempo, com materiais biográficos. Tanto é possível tirar um bom proveito da perspectiva biográfica, que seu esforço resultou em um livro inspirador. Gênero fronteiriço entre o ensaio, a história e a ficção, a biografia se define, antes de tudo, por um dilema ético. Alguns o resolvem adotando o caminho mais preguiçoso da “biografia romanceada”, em que se fica com o pior das biografias e com o pior das ficções.
Mesmo sabendo que produz uma obra literária – a biografia é um gênero literário –, o biógrafo não pode se esquivar da luta com seu biografado. Precisa enfrentá-lo. Coetzee faz isso quando observa que a lealdade é um tema tão forte na vida de Faulkner quanto em sua literatura. Surpreende-se, porém, com a lealdade extrema do escritor a uma “mulher gastadeira, parentes sem tostão, contratos desvantajosos com os estúdios”, defeitos que ele suportava com tenacidade – até em detrimento de sua arte –, e neles vê uma “lealdade enlouquecida, ou fidelidade enlouquecida”. Também Coetzee arrisca um olhar singular sobre Faulkner e sua obra, sem pretender, contudo, que suas observações esgotem a alma do escritor e seus livros.
Pisa Coetzee, com grande delicadeza, na fronteira em que os biógrafos habitam. De um lado, o biógrafo deve cobiçar a objetividade e a distância; de outro, não tem o direito de esconder a perspectiva particular com que observa, ordena e classifica seu objeto. De nada adianta fugir para o reino supostamente protegido da “biografia romanceada”; de nada serve, ao contrário, acreditar que os fatos – bem apurados, bem pesquisados, investigados “até o fim” – falarão por si. Fatos não falam por si; eles estão sempre mediados pela voz de um autor. A ética do biógrafo, portanto, não está na pretensão enlouquecida de capturar a alma do outro; mas também não está na desistência desse projeto. Parece estar entre os dois: buscar a vida objetiva sabendo que, sempre, resvalará na ficção; perseguir “toda a verdade” com a consciência de que, no fim, ficará apenas com partes muito frágeis dela.
Protesta Coetzee contra a tese de Frederick Karl segundo a qual os romances menos importantes de Faulkner trazem melhores revelações biográficas que seus grandes romances. Na arte da biografia, tanto a afirmação peremptória quanto a negação peremptória conduzem ao mesmo impasse. Uma coisa fundamental não falta ao J.M. Coetzee biógrafo: a delicadeza. Só com ela um biógrafo consegue se aproximar um pouco mais de seu biografado. Nem santificá-lo nem destruí-lo. Não aprisioná-lo em uma suposta “história verdadeira”, mas também não dissolver sua vida na borra adocicada – e fatal – do “romance”.
Acariciar a face do biografado e envolvê-la em um olhar frágil e parcial, eis tudo o que um biógrafo pode fazer. A consciência desse precário limite é a ética do biógrafo. Resta lembrar, a propósito, a advertência de William Faulkner: “Todos nós malogramos quanto a alcançar nosso sonho de perfeição”.
José Castello, in Sábados inquietos

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