quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Adultos em excesso

Guimarães Rosa, escrevendo sobre a infância: “Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope e nem mesmo eu, ninguém sabia disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas! [Algumas de minhas distrações eram] armar alçapões para pegar sanhaços – e depois tornar a soltá-los. Que maravilha! Puxar sabugos de espigas de milho, feito boizinhos de carro, brinquedo saudoso; atrelar um sabugo branco com outro vermelho, e mais uma junta de bois pretos – sabugos enegrecidos pelo fogo. Prender formiguinhas em ilhas, que eram pedras postas num tanque raso, e unidas por pauzinhos, pontes para as formiguinhas passar. Aproveitar um fiozinho d’água, que vinha do posto das lavadeiras, e mudar-lhes duas vezes por dia a curso, fazendo-o de Denúbio ou de São Francisco, ou de Sapakral-lar (nome inventado), com todas as curvas dos ditos, com as cidades marginais marcadas por grupos de pedrinhas, tudo isso sob o voo matinal das maitacas de Nhô Augusto Matraca, no quintal.”
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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