Guimarães
Rosa, escrevendo sobre a infância: “Não gosto de falar da
infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes
incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o
tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles,
mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor,
em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente,
então. Já era míope e nem mesmo eu, ninguém sabia disso. Gostava
de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de
verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a
segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no
chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo
conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e
ouvidas! [Algumas de minhas distrações eram] armar alçapões para
pegar sanhaços – e depois tornar a soltá-los. Que maravilha!
Puxar sabugos de espigas de milho, feito boizinhos de carro,
brinquedo saudoso; atrelar um sabugo branco com outro vermelho, e
mais uma junta de bois pretos – sabugos enegrecidos pelo fogo.
Prender formiguinhas em ilhas, que eram pedras postas num tanque
raso, e unidas por pauzinhos, pontes para as formiguinhas passar.
Aproveitar um fiozinho d’água, que vinha do posto das lavadeiras,
e mudar-lhes duas vezes por dia a curso, fazendo-o de Denúbio ou de
São Francisco, ou de Sapakral-lar (nome inventado), com todas as
curvas dos ditos, com as cidades marginais marcadas por grupos de
pedrinhas, tudo isso sob o voo matinal das maitacas de Nhô Augusto
Matraca, no quintal.”
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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