Todos
são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o
fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a
poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem
a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática
lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral
imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve
despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de
eficiência - eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro
passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a
poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos
convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia
depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a
depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um
dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é
fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente
contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria
vez.
Isso
me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos
Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande
comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores
supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma
mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em
Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em
comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que
nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e
o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a
extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur
Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande
Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O
verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta,
uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras
da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro
impalpável. E como as mulheres - dizia-me ele ao lado da sua - são
seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha
que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a
própria mulher.
-
Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo,
podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais
sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza.
Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as
mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs
do capitalismo.
Ponderei-lhe
que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na
cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se
deixou perturbar e me disse assim:
-
É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e
puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As
mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um
apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse
amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes
empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o
dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda.
-
Eu conheci e era amigo - ponderei-lhe - de um grande poeta que foi
também um grande homem de negócios.
-
Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda
infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo
tempo.
Admirei-lhe,
não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e
honestidade - ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta
anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um
solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a
nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante,
resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem
rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim
de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com
três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de
vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos,
mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar
com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras.
-
Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas
diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral,
depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir.
Depois,
na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do
bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu
um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou
com uma voz que não permitia réplica:
-
Não é uma beleza, poeta?
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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