quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Leitura das sombras

Em 1984, duas pequenas placas de argila de formato vagamente retangular foram encontradas em Tel Brak, Síria, datando do quarto milênio antes de Cristo. Eu as vi, um ano antes da guerra do Golfo, numa vitrine discreta do Museu Arqueológico de Bagdá.
São objetos simples, ambos com algumas marcas leves: um pequeno entalhe em cima e uma espécie de animal puxado por uma vara no centro. Um dos animais pode ser uma cabra, e nesse caso o outro é provavelmente uma ovelha. O entalhe, dizem os arqueólogos, representa o número dez. Toda a nossa história começa com essas duas modestas placas.' Eles estão - se a guerra os poupou - entre os exemplos mais antigos de escrita que conhecemos.
Há algo intensamente comovente nessas placas. Quando olhamos essas peças de argila levadas por um rio que não existe mais, observando as incisões delicadas que retratam animais transformados em pó há milhares e milhares de anos, talvez uma voz seja evocada, um pensamento, uma mensagem que nos diz: “Aqui estiveram dez cabras”, “Aqui estiveram dez ovelhas”, palavras pronunciadas por um fazendeiro cuidadoso no tempo em que os desertos eram verdes. Pelo simples fato de olhar essas placas, prolongamos a memória dos primórdios do nosso tempo, preservamos um pensamento muito tempo depois que o pensador parou de pensar e nos tornamos participantes de um ato de criação que permanece aberto enquanto as imagens entalhadas forem vistas, decifradas, lidas.
Tal como meu nebuloso ancestral sumério lendo as duas pequenas placas naquela tarde inconcebivelmente remota, eu também estou lendo, aqui na minha sala, através de séculos e mares. Sentado à minha escrivaninha, cotovelos sobre a página, queixo nas mãos, abstraído por um momento da mudança de luz lá fora e dos sons que se elevam da rua, estou vendo, ouvindo, seguindo (mas essas palavras não fazem justiça ao que está acontecendo dentro de mim) uma história, uma descrição, um argumento. Nada se move, exceto meus olhos e a mão que vira ocasionalmente a página, e contudo algo não exatamente definido pela palavra texto desdobra-se, progride, cresce e deita raízes enquanto leio. Mas como acontece esse processo?
A leitura começa com os olhos. “O mais agudo dos nossos sentidos é a visão”, escreveu Cícero, observando que quando vemos um texto lembramo-nos melhor dele do que quando apenas o ouvimos. Santo Agostinho louvou (e depois condenou) os olhos como o ponto de entrada do mundo,’ e santo Tomás de Aquino chamou a visão de “o maior dos sentidos pelo qual adquirimos conhecimento”.’ Até aqui está óbvio para qualquer leitor: as letras são apreendidas pela visão. Mas por meio de qual alquimia essas letras se tornam palavras inteligíveis? O que acontece dentro de nós quando nos defrontamos com um texto? De que forma as coisas vistas, as “substâncias” que chegam através dos olhos ao nosso laboratório interno, as cores e formas dos objetos e das letras se tornam legíveis?
O que é, na verdade, o ato que chamamos de ler?
Empédocles, no século v a.C., descreveu os olhos como nascidos da deusa Afrodite, que “confinou um fogo nas membranas e tecidos delicados; estes seguraram a águia profunda que fluía em torno, mas deixaram passar as chamas internas para fora”. Mais de um século depois, Epicuro imaginou essas chamas como películas finas de átomos que fluíam da superfície de cada objeto e entravam em nossos olhos e mentes como uma chuva constante e ascendente, encharcando-nos de todas as qualidades do objeto.
Euclides, contemporâneo de Epicuro, propôs uma teoria oposta: dos olhos do observador saem raios para apreender o objeto observado. Problemas aparentemente insuperáveis infestavam ambas as teorias. Por exemplo, no caso da primeira, a assim chamada teoria da “intromissão”, como poderia a película de átomos emitida por um objeto grande — um elefante ou o monte Olimpo entrar num espaço tão pequeno como o olho humano?
Quanto à segunda, a teoria da “extromissão”, que raio poderia sair dos olhos e, numa fração de segundo, alcançar as longínquas estrelas todas as noites?
Algumas décadas antes, Arístóteles sugerira uma outra teoria. Antecipando e corrigindo Epicuro, ele afirmara que eram as qualidades das coisas observadas — e não uma película de átomos — que viajavam através do ar (ou de algum outro meio) até os olhos do observador assim, o que se apreendia não eram as dimensões reais, mas o tamanho e a forma relativos de uma montanha. O olho humano, segundo Aristóteles, era como um camaleão, assumindo a forma e a cor do objeto observado e passando essa informação, via humores do olho, para as todo-poderosas entranhas (splanchna), um conglomerado de órgãos que incluía coração, fígado, pulmões, bexiga e vasos sanguíneos e controlava os movimentos e os sentidos.
Seis séculos mais tarde, o médico grego Galeno apresentou uma quarta solução, contradizendo Epicuro e seguindo Euclides. Galeno propôs que um “espírito visual”, nascido no cérebro, cruzava o olho através do nervo ótico e saía para o ar. O próprio ar tornava-se então capaz de percepção, apreendendo as qualidades dos objetos percebidos, por mais longe que estivessem. Através do olho, essas qualidades eram retransmitidas de volta ao cérebro e desciam pela medula aos nervos dos sentidos e do movimento. Para Aristóteles, o observador era uma entidade passiva que recebia pelo ar a coisa observada, sendo esta em seguida comunicada ao coração, sede de todas as sensações, inclusive a visão. Para Galeno, o observador, tornando o ar sensível, desempenhava um papel ativo, e a raiz de onde nascia a visão estava no fundo do cérebro.
Os estudiosos medievais, para quem Galeno e Aristóteles eram as fontes do conhecimento científico, acreditavam em geral que se poderia encontrar uma relação hierárquica entre essas duas teorias. Não se tratava de uma teoria superar a outra: o importante era extrair de cada uma delas a compreensão de como as diferentes partes do corpo relacionavam-se com as percepções do mundo externo - e também como essas partes relacionavam-se umas com as outras. Gentile da Foligno, médico italiano do século XIV, sentenciou que essa compreensão era “um passo tão essencial para a medicina quanto o é o alfabeto para a leitura” e recordou que santo Agostinho, um dos primeiros Pais da Igreja, já dedicara atenção cuidadosa à questão. Para ele, cérebro e coração funcionavam como pastores daquilo que os sentidos armazenavam na nossa memória, e ele usou o verbo col igere (significando ao mesmo tempo coletar e resumir) para descrever como essas impressões eram recolhidas de compartimentos separados da memória e “guiadas para fora de suas velhas tocas, porque não há nenhum outro lugar para onde possam ir”.
A memória era apenas uma das funções que se beneficiavam dessa administração zelosa dos sentidos. Era comumente aceito pelos estudiosos medievais (como Galeno sugerira) que visão, audição, olfato, gosto e tato alimentavam-se de um repositório sensorial geral Localizado no cérebro, uma área conhecida às vezes como "senso comum", da qual derivava não apenas a memória, mas também o conhecimento, as fantasias e os sonhos.
Essa área, por sua vez, estava conectada ao splanchna aristotélico, então reduzido pelos comentadores medievais exclusivamente ao coração, centro de todos os sentimentos.
Assim, atribuiu-se aos sentidos um parentesco direto com o cérebro, enquanto se declarava que o coração, em última instância, era o senhor do corpo. Um manuscrito em alemão do tratado de Aristóteles sobre lógica e filosofia natural, datado do final do século XIV, retrata a cabeça de um homem, olhos e boca abertos, narinas alargadas, uma orelha cuidadosamente realçada. Dentro do cérebro estão cinco pequenos círculos conectados que representam, da esquerda para a direita, a sede principal do senso comum e, na sequência, as sedes da imaginação, da fantasia, do poder cogitativo e da memória. De acordo com o comentário que acompanha a ilustração, o círculo do senso comum relaciona-se ainda com o coração, também representado no desenho. Esse esquema é um bom exemplo de como se imaginava o processo da percepção no final da Idade Média, com um pequeno adendo: embora não esteja presente nessa ilustração, supunha-se comumente (com base em Galeno) que na base do cérebro havia uma “rede maravilhosa” – rete mirabile - de pequenos vasos que agiam como canais de comunicação quando qualquer coisa que chegasse ao cérebro era refinada. Essa rete mirabile aparece no desenho de um cérebro que Leonardo da Vínci fez por volta de 1508, marcando claramente os ventrículos separados e atribuindo as várias faculdades mentais a seções diferentes. Segundo Leonardo, “o senso comune é que julga as impressões transmitidas pelos outros sentidos [...] e seu lugar é no meio da cabeça, entre a impresiva [centro das impressões] e a memoria [centro da memória]. Os objetos circundantes transmitem suas imagens para os sentidos e estes as passam para a impresiva. A impresiva comunica-os ao senso comume e dali elas são impressas na memória, onde se tornam mais ou menos fixas, de acordo com a importância e a força do Objeto em questão.” A mente humana, na época de Leonardo, era considerada um pequeno laboratório onde o material recolhido pelos olhos, Ouvidos e outros órgãos da percepção tornavam-se “impressões” no cérebro, sendo então canalizadas através do centro do senso comum e depois transformadas em umas das várias faculdades - como a memória - sob a influência do coração supervisor. A visão de letras negras (para usar uma imagem alquímica) tornou-se, por meio desse processo, o ouro do conhecimento).
Mas uma questão fundamental continuava sem solução: somos nós, leitores, que nos estendemos e capturamos as letras numa página, de acordo com as teorias de Euclides e Galeno? Ou são as letras que vêm aos nossos sentidos, como Epicuro e Aristóteles afirmaram? Para Leonardo e seus contemporâneos, a resposta (ou indícios de resposta) poderia ser encontrada numa tradução do século XIII de um livro escrito duzentos anos antes (tão demoradas são às vezes as hesitações da erudição), no Egito, pelo estudioso de Basra al-Hasan ibn al-Haytham, conhecido no Ocidente como Alhazen.
Alberto Manguel, in Uma história da leitura

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