domingo, 25 de novembro de 2018

Porque a Europa?

O fato de que pessoas de uma grande ilha no Atlântico Norte conquistaram uma grande ilha no sul da Austrália é um dos acontecimentos mais estranhos da história. Não muito antes da expedição de Cook, as Ilhas Britânicas e a Europa Ocidental de modo geral não passavam de uma região afastada do mundo mediterrâneo. Pouca coisa de importante havia acontecido ali. Até mesmo o Império Romano – o único império pré-moderno importante – obteve a maior parte de sua riqueza de suas províncias na África do Norte, nos Bálcãs e no Oriente Médio. As províncias romanas na Europa Ocidental eram um pobre Velho Oeste, que contribuiu com pouca coisa além de minerais e escravos. O norte da Europa era tão desolado e bárbaro que nem sequer valia a pena conquistá-lo.
Foi só no fim do século XV que a Europa se tornou uma incubadora de importantes avanços militares, políticos, econômicos e culturais. Entre 1500 e 1750, a Europa Ocidental ganhou ímpeto e se tornou senhora do “Mundo Exterior”, ou seja, dos dois continentes americanos e dos oceanos. Mas mesmo então a Europa não era páreo para as grandes potências da Ásia. Os europeus conseguiram conquistar a América e obter a supremacia no mar principalmente porque as potências asiáticas mostraram pouco interesse por eles. O início da era moderna foi uma época de ouro para o Império Otomano no Mediterrâneo, o Império Safávida na Pérsia, o Império Mogol na Índia e as dinastias Ming e Qing na China. Esses impérios expandiram consideravelmente seus territórios e desfrutaram de um crescimento econômico e demográfico sem precedentes. Em 1775, a Ásia era responsável por 80% da economia mundial. A economia combinada da Índia e da China representava dois terços da produção global. Em comparação, a Europa era um anão econômico.
O centro de poder global só passou para a Europa entre 1750 e 1850, quando os europeus humilharam as potências asiáticas em uma série de guerras e conquistaram grandes partes da Ásia. Em 1900, os europeus controlavam firmemente a economia mundial e a maior parte de seu território. Em 1950, a Europa Ocidental e os Estados Unidos, juntos, eram responsáveis por mais da metade da produção global, ao passo que a porção da China havia sido reduzida a 5%. Sob a égide europeia, surgiram uma nova ordem global e uma nova cultura global. Hoje todos os humanos são, muito mais do que em geral estão dispostos a admitir, europeus em suas vestimentas, ideias e gostos. Podem ser ferrenhos opositores dos europeus em sua retórica, mas quase todos no planeta veem a política, a medicina, a guerra e a economia da perspectiva dos europeus e escutam músicas compostas em estilos europeus com palavras em idiomas europeus. Até mesmo a próspera economia chinesa de hoje, que possivelmente logo reconquistará a primazia global, é edificada sobre um modelo europeu de produção e financiamento.
Como as pessoas dessa península gelada da Eurásia conseguiram sair de seu canto remoto do globo e conquistar o mundo inteiro? Com frequência, grande parte do crédito vai para os cientistas da Europa. É inquestionável que de 1850 em diante a dominação europeia se apoiou, em grande medida, no complexo militar-industrial-científico e na magia tecnológica. Todos os impérios prósperos do fim da era moderna cultivaram a pesquisa científica na esperança de colher inovações tecnológicas, e muitos cientistas passaram a maior parte do tempo trabalhando em armamentos, medicamentos e máquinas para seus senhores imperiais. Um ditado comum entre os soldados europeus enfrentando inimigos africanos era “Venha o que vier, nós temos metralhadoras; eles não”. As tecnologias civis eram não menos importantes. Comida enlatada alimentava soldados, ferrovias e navios a vapor transportavam soldados e suas provisões, ao passo que um novo arsenal de medicamentos curava soldados, marinheiros e engenheiros de locomotivas. Esses avanços logísticos exerceram um papel muito mais importante na conquista europeia da África do que as metralhadoras.
Mas não era assim antes de 1850. O complexo militar-industrial-científico ainda estava em sua infância; os frutos tecnológicos da Revolução Científica estavam verdes; e a brecha tecnológica entre as potências europeias, asiáticas e africanas era pequena. Em 1770, James Cook certamente tinha uma tecnologia muito melhor do que os aborígenes australianos, mas os chineses e os otomanos também. Sendo assim, por que a Austrália foi explorada e colonizada pelo capitão James Cook, e não pelo capitão Wan Zhengse ou pelo capitão Hussein Pasha? E, o que é mais importante, se em 1770 os europeus não tinham qualquer vantagem tecnológica significativa sobre muçulmanos, indianos e chineses, como eles conseguiram, no século seguinte, abrir tamanha brecha entre si mesmos e o resto do mundo?
Por que o complexo militar-industrial-científico floresceu na Europa, e não na Índia? Quando a Grã-Bretanha saiu na frente, por que a França, a Alemanha e os Estados Unidos logo seguiram seus passos, enquanto a China ficou para trás? Quando a distância entre as nações industriais e não industriais se tornou um fator político e econômico óbvio, por que a Rússia, a Itália e a Áustria conseguiram superá-la, enquanto a Pérsia, o Egito e o Império Otomano não? Afinal, a tecnologia da primeira onda industrial era relativamente simples. Era assim tão difícil para os chineses ou os otomanos projetar motores a vapor, fabricar metralhadoras e construir ferrovias?
A primeira ferrovia comercial do mundo foi inaugurada em 1830, na Grã-Bretanha. Em 1850, as nações ocidentais eram atravessadas por quase 40 mil quilômetros de ferrovias – mas em toda a Ásia, África e América Latina havia apenas 4 mil quilômetros de trilhos. Em 1880, o Ocidente ostentava mais de 350 mil quilômetros de ferrovias, enquanto no resto do mundo havia apenas 35 mil quilômetros de linhas de trem (e a maioria delas foi construída pelos britânicos na Índia). 5 A primeira ferrovia na China só foi inaugurada em 1876. Tinha 25 quilômetros de extensão e foi construída por europeus – o governo chinês a destruiu no ano seguinte. Em 1880, o Império Chinês não operava uma única ferrovia. A primeira ferrovia na Pérsia só foi construída em 1888 e conectava Teerã a um lugar sagrado muçulmano cerca de dez quilômetros ao sul da capital. Foi construída e operada por uma empresa belga. Em 1950, a malha ferroviária total da Pérsia ainda totalizava meros 2,5 mil quilômetros, em um país com sete vezes o tamanho da Grã-Bretanha.
Os chineses e os persas não careciam de invenções tecnológicas como os motores a vapor (que podiam ser comprados ou copiados livremente). Eles careciam dos valores, dos mitos, do aparato jurídico e das estruturas sociopolíticas que levaram séculos para se formar e amadurecer no Ocidente e que não podiam ser copiadas e internalizadas rapidamente. A França e os Estados Unidos logo seguiram os passos da Grã-Bretanha porque os franceses e os norte-americanos já partilhavam das estruturas sociais e dos mitos britânicos mais importantes. Os chineses e os persas não conseguiram acompanhar tão depressa porque pensavam e organizavam suas sociedades de maneira diferente.
Essa explicação lança nova luz sobre o período de 1500 a 1850. Durante essa época, a Europa não desfrutou de nenhuma vantagem tecnológica, política, militar ou econômica óbvia sobre as potências asiáticas, mas o continente desenvolveu um potencial único, cuja importância se tornou clara subitamente por volta de 1850. A aparente igualdade entre a Europa, a China e o mundo muçulmano em 1770 era uma miragem. Imagine dois construtores, cada um deles ocupado construindo torres muito altas. Um construtor usa madeira e tijolos de barro, ao passo que o outro usa aço e concreto. No início, parece que não há grande diferença entre os dois métodos, já que ambas as torres crescem a um ritmo similar e atingem uma altura semelhante. No entanto, assim que um limiar crítico é ultrapassado, a torre de barro e madeira não consegue aguentar a pressão e desaba, enquanto a torre de aço e concreto cresce andar por andar, até onde a vista alcança.
Que potencial a Europa desenvolveu no início da era moderna que lhe permitiu dominar o mundo no fim dessa era? Há duas respostas complementares para essa pergunta: a ciência moderna e o capitalismo. Os europeus estavam acostumados a pensar e se comportar de maneira científica e capitalista muito antes de desfrutarem alguma vantagem tecnológica. Quando a bonança tecnológica começou, eles puderam aproveitá-la muito melhor do que todos os demais. Então, dificilmente é uma coincidência que a ciência e o capitalismo formem o legado mais importante que o imperialismo europeu deixou para o mundo pós-europeu do século XXI. A Europa e os europeus já não dominam o mundo, mas a ciência e o capital estão cada vez mais fortes.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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