domingo, 25 de novembro de 2018

Memória de infância

Nos seus devaneios sobre a infância, Bachelard se reencontra com remédios que se tornaram obsoletos, remédios que tinham nomes poderosos, nomes que faziam parte de suas potências curativas. Bastava ouvir o nome para se sentir meio curado. A leitura de Bachelard me levou de volta aos remédios antigos... Lembrei-me da Emulsão de Scott. Quem teria sido esse senhor Scott? O rótulo da garrafa dizia que o senhor Scott era um homem que conhecia os segredos curativos dos peixes. Lá está a figura de um homem carregando às suas costas um peixe enorme, do seu tamanho, um bacalhau. Quem toma Emulsão de Scott ganha a saúde dos peixes. Fiquei com tanta saudade que fui à farmácia e comprei um vidro, pois ela ainda sobrevive, a emulsão, para atender os devaneios dos velhos. Em casa abri o vidro e oh!, desapontamento. Seu horrível cheiro original havia sido substituído pelo perfume de morangos! Mas que têm os morangos, delicadas frutinhas da horta, a ver com os mares profundos onde nadam os bacalhaus? Voltei à farmácia. Felizmente ainda há os originais. Vejo-me menino, é o mês de julho, mês do frio, mês de tomar Emulsão de Scott. Minha mãe chega com uma colher cheia do líquido pastoso branco de gosto e cheiro horríveis em uma mão, e a metade de uma laranja na outra. A laranja, para consertar o gosto e o cheiro... Resolvi fazer uma pesquisa. Fui à Farmácia Carcajon, minha vizinha, à procura dos remédios velhos. Os atendentes, meus amigos, se juntaram à minha pesquisa. Rum Creosotado. Rum Creosotado é poesia. “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E no entretanto acredite: quase morreu de bronquite. Salvou-o o Rum Creosotado.” A poesia torna eternas as lembranças... Essas rimas se encontravam em todo bonde. Pra passar o tempo enquanto viajava, a gente ia lendo e decorando. Os bondes não mais existem, as rimas não mais se leem. Limonada purgativa. Ah! Coisa terrível. Aplicada a quem estava com dor de barriga, produzia uma limpeza apocalíptica no intestino. Muitos apêndices inflamados supuraram por causa da limonada! Nenhuma mulher podia prescindir do Regulador Xavier, números 1 e 2. De novo, o nome: Xavier. Os cientistas, inventores dos remédios, tratavam de perpetuar os seus nomes nos vidros das poções mágicas que inventavam. Mágicas? Isso mesmo! Até se usava a expressão: “Um santo remédio!”. Naqueles tempos, os remédios tinham qualidades teológicas, pertenciam ao mundo dos mistérios sagrados. É o caso da palavra “elixir”. A etimologia muito me tem revelado sobre a arqueologia das palavras, o que significavam quando do seu nascimento. Na minha cabeça, a palavra “elixir” me transporta para o mundo das estórias de encantamento. Elixir d’amore ! Emulsão não se aplicaria. Emulsão de amor não soa bem. Por quê? Não sei. A poesia tem razões que a prosa desconhece. O Dicionário Webster, meu amigo fiel, me informou que a palavra elixir vem do árabe “el iksir”, que significa “pedra filosofal”. Na alquimia, os elixires eram líquidos que tinham o poder de transformar metais baratos em ouro. E tinham o poder de prolongar a vida indefinidamente. Elixir Dória. Para quem comeu demais. Umas gotas pretas, amargas. Na figura da propaganda, um homem de boca aberta da qual saía a cabeça de um boi, com chifre e tudo. O Elixir Dória digeria até cabeça de boi... Eu ainda faço uso de um elixir, o Elixir Paregórico. Potentíssimo. Ação rápida. Contra cólicas. Sempre carrego um vidrinho em minhas andanças. Outro elixir era o Elixir de Inhame Goulart. Quem diria que dos inhames se podem extrair maravilhas curativas! E, por falar nisso, tinha um remédio com o nome de Maravilha Curativa. Quem seria capaz de resistir ao poder do nome? Não sei o que curava, mas que curava, curava... E o Phimatosan, para tosse, com o qual os meninos faziam uma brincadeira: “Caim matou Abel, Phi matou Zan, Esper matou Zoide...”. E que dizer das pílulas? Pílulas de Vida do dr. Ross, redondinhas, branquinhas, do tamanho de um caroço de uva. Dizia a propaganda: “pequeninas mas resolvem”. Resolvem o quê? Constipação intestinal, prisão de ventre. Havia os novatos que não acreditavam, as pílulas eram muito pequenas, e resolviam tomar logo cinco de uma vez. Ah! Pobres coitados, condenados a passar uma noite inteira sem poder dormir, correndo entre a cama e a privada... O Biotônico Fontoura. O nome está dizendo: bio = vida + tônico = que fortalece. Remédio que dá vida. Ficou famoso com a estória do Jeca Tatuzinho, que era um pobre caboclo que morava numa casinha coberta de sapé. Tomou o Biotônico, ficou forte, derrubou mato, ficou valente, deu murro em onça, ficou rico, os porcos e galinhas da sua fazenda todos usavam sapatos, para não terem verminose, fumou charuto. Naqueles tempos, o símbolo da riqueza não era ter BMW, era fumar charuto. Era comum se encontrar nos armazéns um quadro com duas metades. Na primeira metade, um magricela, esfarrapado, assentado no chão de um quarto vazio, cheio de teias de aranhas e ratos, com os dizeres: “Eu vendi fiado”. Na outra metade, um homem gordo, papada redonda, assentado numa poltrona, numa loja rica, “burra” aberta com dinheiro derramando, fumando um charuto, com os dizeres: “Eu vendi a dinheiro”. É, os tempos mudaram. Hoje só fica rico quem vende fiado. Prova disso são os cartões de crédito. Acho que vai chegar um tempo em que o dinheiro vai desaparecer. Apenas usaremos cartões e trabalharemos com números. Vai desaparecer o delicioso prazer de contar dinheiro com o dedo “pai de todos”, o dedo do prazer... Os valores monetários serão valores virtuais. E tinha o Xarope de Limão Bravo, Xarope São João, Salicilato de Bismuto, Pílulas de Lussen, Pílulas de Erva de Bicho, Violeta de Genciana. Compare esses nomes potentes com os nomes dos remédios de agora: Garasone, Lognox, Deiclogenon, Cetroloc, Flixotide, Vioxx (com dois “x” mesmo...), Celebra, Clo, Efexor XR, Clob-X, Buscopan, Amaril. Acho que outros nomes, mais poéticos, mais fantasiosos, teriam mais efeito.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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