quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O futuro por metade

Lembro aqui um episódio que vivi como jornalista em 1974, naquele a que chamávamos o “período de transição”, sem sabermos que era apenas o primeiro de uma série interminável de períodos de transição. E espero bem que muitas outras transições ainda ocorram sem que ninguém pretenda bloquear este processo de procuras a que nos temos dedicado.
Era o dia 7 de abril de 1975, a primeira vez que se comemorava em todo o Moçambique o Dia da Mulher Moçambicana. Eu trabalhava no jornal Tribuna e mandaram-me fazer a cobertura das celebrações no porto de Maputo. Quem dirigia o encontro era o saudoso general Sebastião Mabote.
Logo no início do encontro cantaram-se e clamaram-se os obrigatórios vivas como era habitual nesse tempo. O entusiasmo dos estivadores era total e a adesão ao orador era completa. Mabote gritava “Viva a Mulher!” e centenas de braços bem másculos e vozes ásperas se erguiam concertados num único e vigoroso arremesso.
De repente, o general parou e, de cima de um improvisado pódio, contemplou a multidão composta apenas por homens duros, musculados pelo trabalho. O seu olhar era de mandador de almas, habituado à liderança. Foi então que ele deu voz de comando: “Gritem todos comigo, quero que o nosso grito vá bem para além de Maputo”. E os homens responderam em coro que sim, que fariam coro com o seu líder. Então, Sebastião Marcos Mabote, levantando os braços a encorajar as massas, iniciou o seguinte mote: “Somos todos mulheres! Somos todos mulheres!”. E incentivava, vibrante, para que todos fizessem coro. Um silêncio espantado, uma atrapalhação geral percorreu os estivadores. Alguns, uns poucos, timidamente começaram a repetir o estranho slogan. Mabote conhecia as artes da comunicação com as massas. E insistiu, paciente, até que, passados uns dolorosos minutos, mais e mais vozes másculas proclamassem a sua identidade feminina. Mas ninguém clamou a plenos pulmões. E os que timidamente erguiam a voz nunca passaram de uma pequena minoria. O general, desta vez, não foi bem-sucedido.
Partilho esta lembrança convosco porque ela confirma aquilo que todos sabemos: é fácil (embora se vá tornando raro) ser-se solidário com os outros. Difícil é sermos os outros. Nem que seja por um instante, nem que seja de visita. Os estivadores estavam dispostos a declarar o seu apoio à Mulher. Mas não estavam disponíveis a viajar para o seu lado feminino. E recusaram pensarem-se renascidos sob uma outra pele, dentro de um outro gênero. Dizemos que somos tolerantes com as diferenças. Mas ser-se tolerante é ainda insuficiente. É preciso aceitar que a maior parte das diferenças foi inventada e que o Outro (o outro sexo, a outra raça, a outra etnia) existe sempre dentro de nós.
É obvio que falo em ser o Outro não no sentido literal, não proponho que nós, homens, iniciemos uma operação travesti, macaqueando os tiques, pintando os lábios e as unhas, usando soutien e sapato alto. Porque esta operação de disfarce os homens já a cumprem demais, muito mais do que eles próprios querem admitir. Não nos esqueçamos de que, no Carnaval, o disfarce mais comum é o homem mascarado de mulher. É quase uma obsessão. Mesmo entre os mais duros machos existe essa estranha pulsão de desfilar passando-se por mulher, nos dias em que isso é socialmente consentido. Valia a pena interrogarmos — até no sentido psiquiátrico — esta vontade de se ser aquele que tão veementemente se nega.
Mas eu não falo dessa conversão mimética. Falo da disponibilidade de viajarmos para aquilo que entendemos como sendo a alma dos outros. A capacidade de visitarmos, em nós, aquilo que pode ser chamado de alma feminina mesmo que não saibamos exatamente o que isso é, mesmo que desconheçamos onde começa e acaba a fronteira entre o masculino e o feminino.
Recordo-me de que numa conferência sobre literatura em Durban um escritor sul-africano atacava um jovem poeta do seu país. E dizia: “Você fez um verso sobre uma mulher africana andando de bicicleta no campo. Ora, isso nunca pode acontecer com uma mulher bantu”. Eu tinha acabado de viajar por Sofala e pela Zambézia e, por acaso, tinha comigo fotografias com várias de mulheres circulando de bicicleta. Exibi essas provas do “crime” e o crítico, azedo, resmungou: “Sim, mas essas não são mulheres zulus”. O universo das bantus reduziu-se drástica e subitamente às zulus. E muito provavelmente existiriam, sem que o nosso amigo soubesse, muitas mulheres zulus pedalando pelas estradas sul-africanas. Mas o ponto não é este. É que mesmo que nenhuma mulher de uma certa comunidade faça uso de bicicleta, a literatura é livre de inventar o que quiser e colocar sobre o selim um corpo feminino ou um corpo de um sexo por inventar.
Eu creio que a reação do escritor sul-africano é reveladora de que a posição do homem invocando interdições em nome de uma hipotética “essência” feminina nasce da insegurança. Nasce do medo. Nós homens não conhecemos aquelas com quem partilhamos a Vida e o Mundo. Receamos aquilo que elas pensam, sentimo-nos ameaçados com o que elas sentem. Olhamos o futuro como uma bicicleta conduzida por uma mulher. Provavelmente, a mulher sofre da mesma dificuldade de ser o Outro e de viajar pela alma do Homem. Mas algo me diz que ela não sofre dos mesmos receios sobre um futuro dominado pelo Homem. Na realidade, ela já está vivendo esse presente. E esse presente é um chapa-cem [táxi] conduzido por mãos masculinas.
Afinal, foi este profundo e antigo receio que veio à tona quando os estivadores tiveram de gritar o slogan sugerido por Sebastião Mabote.
É contra este medo profundo que Ibsen e todos os grandes escritores trabalharam. Eles se antecipam, construindo universos para além da realidade e fizeram sonhar os outros porque se sonharam eles mesmos para além dos limites do seu corpo e daquilo que se dizia ser a sua identidade.
Cem anos depois, estamos celebrando a obra de um homem que representa um país, uma língua e uma cultura aparentemente tão distantes. É que nenhum homem é distante. Todo o homem se torna próximo na luta a favor da humanidade. Ibsen foi um escritor e um lutador. Nas suas notas na peça A casa das bonecas ele escreveu: “Uma mulher não pode ser ela própria nesta sociedade que se construiu como uma sociedade masculina com leis traçadas por homens e por juízes masculinos que julgam a sociedade a partir de critérios masculinos”. E nós, moçambicanos, estamos olhando Moçambique como uma entidade masculina.
A nossa sociedade vive em permanente e generalizado estado de violência contra a mulher. Essa violência é silenciosa (eu preferia dizer que é silenciada) por razões de um alargado compadrio machista. Os níveis de agressão doméstica são enormes, os casos de violação são inadmissíveis, a violência contra as viúvas foi já reportada em livro, a violência contra as mulheres idosas acusadas de feitiçaria e, por isso, punidas e estigmatizadas. E há mais se quisermos ilustrar este estado de agressão silenciosa e sistemática contra as mulheres: acima de 21% das mulheres casam-se com idades inferiores a quinze anos (em certas províncias esse número é quase de 60%). Este é o ciclo de vida de uma menina que nunca chega a ser mulher. Esse ciclo reproduz-se de modo a que uma menina que devia ainda ser filha é já mãe de uma menina que ficará impedida de exercer a sua feminilidade. Cinquenta e cinco por cento das meninas casadas com idades até aos dezoito anos já se tornaram mães. Cinquenta e seis por cento desses partos prematuros ocorrem sem apoio de parteiras preparadas. Por todas estas e outras razões, as mulheres dos quinze aos 24 anos são duas vezes mais susceptíveis de serem contaminadas pela Sida do que os rapazes. Estes números todos sugerem uma silenciosa mutilação nacional, um estado permanente de guerra contra nós mesmos.
Esta é a conclusão que poderemos sugerir, a fechar: um país em que as mulheres só podem ser a sua metade está condenado a ter apenas metade do seu futuro.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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