Lembro
aqui um episódio que vivi como jornalista em 1974, naquele a que
chamávamos o “período de transição”, sem sabermos que era
apenas o primeiro de uma série interminável de períodos de
transição. E espero bem que muitas outras transições ainda
ocorram sem que ninguém pretenda bloquear este processo de procuras
a que nos temos dedicado.
Era
o dia 7 de abril de 1975, a primeira vez que se comemorava em todo o
Moçambique o Dia da Mulher Moçambicana. Eu trabalhava no jornal
Tribuna e mandaram-me fazer a cobertura das celebrações no
porto de Maputo. Quem dirigia o encontro era o saudoso general
Sebastião Mabote.
Logo
no início do encontro cantaram-se e clamaram-se os obrigatórios
vivas como era habitual nesse tempo. O entusiasmo dos estivadores era
total e a adesão ao orador era completa. Mabote gritava “Viva a
Mulher!” e centenas de braços bem másculos e vozes ásperas se
erguiam concertados num único e vigoroso arremesso.
De
repente, o general parou e, de cima de um improvisado pódio,
contemplou a multidão composta apenas por homens duros, musculados
pelo trabalho. O seu olhar era de mandador de almas, habituado à
liderança. Foi então que ele deu voz de comando: “Gritem todos
comigo, quero que o nosso grito vá bem para além de Maputo”. E os
homens responderam em coro que sim, que fariam coro com o seu líder.
Então, Sebastião Marcos Mabote, levantando os braços a encorajar
as massas, iniciou o seguinte mote: “Somos todos mulheres! Somos
todos mulheres!”. E incentivava, vibrante, para que todos fizessem
coro. Um silêncio espantado, uma atrapalhação geral percorreu os
estivadores. Alguns, uns poucos, timidamente começaram a repetir o
estranho slogan. Mabote conhecia as artes da comunicação com as
massas. E insistiu, paciente, até que, passados uns dolorosos
minutos, mais e mais vozes másculas proclamassem a sua identidade
feminina. Mas ninguém clamou a plenos pulmões. E os que timidamente
erguiam a voz nunca passaram de uma pequena minoria. O general, desta
vez, não foi bem-sucedido.
Partilho
esta lembrança convosco porque ela confirma aquilo que todos
sabemos: é fácil (embora se vá tornando raro) ser-se solidário
com os outros. Difícil é sermos os outros. Nem que seja por um
instante, nem que seja de visita. Os estivadores estavam dispostos a
declarar o seu apoio à Mulher. Mas não estavam disponíveis a
viajar para o seu lado feminino. E recusaram pensarem-se renascidos
sob uma outra pele, dentro de um outro gênero. Dizemos que somos
tolerantes com as diferenças. Mas ser-se tolerante é ainda
insuficiente. É preciso aceitar que a maior parte das diferenças
foi inventada e que o Outro (o outro sexo, a outra raça, a outra
etnia) existe sempre dentro de nós.
É
obvio que falo em ser o Outro não no sentido literal, não proponho
que nós, homens, iniciemos uma operação travesti, macaqueando os
tiques, pintando os lábios e as unhas, usando soutien e sapato alto.
Porque esta operação de disfarce os homens já a cumprem demais,
muito mais do que eles próprios querem admitir. Não nos esqueçamos
de que, no Carnaval, o disfarce mais comum é o homem mascarado de
mulher. É quase uma obsessão. Mesmo entre os mais duros machos
existe essa estranha pulsão de desfilar passando-se por mulher, nos
dias em que isso é socialmente consentido. Valia a pena
interrogarmos — até no sentido psiquiátrico — esta vontade de
se ser aquele que tão veementemente se nega.
Mas
eu não falo dessa conversão mimética. Falo da disponibilidade de
viajarmos para aquilo que entendemos como sendo a alma dos outros. A
capacidade de visitarmos, em nós, aquilo que pode ser chamado de
alma feminina mesmo que não saibamos exatamente o que isso é, mesmo
que desconheçamos onde começa e acaba a fronteira entre o masculino
e o feminino.
Recordo-me
de que numa conferência sobre literatura em Durban um escritor
sul-africano atacava um jovem poeta do seu país. E dizia: “Você
fez um verso sobre uma mulher africana andando de bicicleta no campo.
Ora, isso nunca pode acontecer com uma mulher bantu”. Eu tinha
acabado de viajar por Sofala e pela Zambézia e, por acaso, tinha
comigo fotografias com várias de mulheres circulando de bicicleta.
Exibi essas provas do “crime” e o crítico, azedo, resmungou:
“Sim, mas essas não são mulheres zulus”. O universo das bantus
reduziu-se drástica e subitamente às zulus. E muito provavelmente
existiriam, sem que o nosso amigo soubesse, muitas mulheres zulus
pedalando pelas estradas sul-africanas. Mas o ponto não é este. É
que mesmo que nenhuma mulher de uma certa comunidade faça uso de
bicicleta, a literatura é livre de inventar o que quiser e colocar
sobre o selim um corpo feminino ou um corpo de um sexo por inventar.
Eu
creio que a reação do escritor sul-africano é reveladora de que a
posição do homem invocando interdições em nome de uma hipotética
“essência” feminina nasce da insegurança. Nasce do medo. Nós
homens não conhecemos aquelas com quem partilhamos a Vida e o Mundo.
Receamos aquilo que elas pensam, sentimo-nos ameaçados com o que
elas sentem. Olhamos o futuro como uma bicicleta conduzida por uma
mulher. Provavelmente, a mulher sofre da mesma dificuldade de ser o
Outro e de viajar pela alma do Homem. Mas algo me diz que ela não
sofre dos mesmos receios sobre um futuro dominado pelo Homem. Na
realidade, ela já está vivendo esse presente. E esse presente é um
chapa-cem [táxi] conduzido por mãos masculinas.
Afinal,
foi este profundo e antigo receio que veio à tona quando os
estivadores tiveram de gritar o slogan sugerido por Sebastião
Mabote.
É
contra este medo profundo que Ibsen e todos os grandes escritores
trabalharam. Eles se antecipam, construindo universos para além da
realidade e fizeram sonhar os outros porque se sonharam eles mesmos
para além dos limites do seu corpo e daquilo que se dizia ser a sua
identidade.
Cem
anos depois, estamos celebrando a obra de um homem que representa um
país, uma língua e uma cultura aparentemente tão distantes. É que
nenhum homem é distante. Todo o homem se torna próximo na luta a
favor da humanidade. Ibsen foi um escritor e um lutador. Nas suas
notas na peça A casa das bonecas ele escreveu: “Uma mulher
não pode ser ela própria nesta sociedade que se construiu como uma
sociedade masculina com leis traçadas por homens e por juízes
masculinos que julgam a sociedade a partir de critérios masculinos”.
E nós, moçambicanos, estamos olhando Moçambique como uma entidade
masculina.
A
nossa sociedade vive em permanente e generalizado estado de violência
contra a mulher. Essa violência é silenciosa (eu preferia dizer que
é silenciada) por razões de um alargado compadrio machista. Os
níveis de agressão doméstica são enormes, os casos de violação
são inadmissíveis, a violência contra as viúvas foi já reportada
em livro, a violência contra as mulheres idosas acusadas de
feitiçaria e, por isso, punidas e estigmatizadas. E há mais se
quisermos ilustrar este estado de agressão silenciosa e sistemática
contra as mulheres: acima de 21% das mulheres casam-se com idades
inferiores a quinze anos (em certas províncias esse número é quase
de 60%). Este é o ciclo de vida de uma menina que nunca chega a ser
mulher. Esse ciclo reproduz-se de modo a que uma menina que devia
ainda ser filha é já mãe de uma menina que ficará impedida de
exercer a sua feminilidade. Cinquenta e cinco por cento das meninas
casadas com idades até aos dezoito anos já se tornaram mães.
Cinquenta e seis por cento desses partos prematuros ocorrem sem apoio
de parteiras preparadas. Por todas estas e outras razões, as
mulheres dos quinze aos 24 anos são duas vezes mais susceptíveis de
serem contaminadas pela Sida do que os rapazes. Estes números todos
sugerem uma silenciosa mutilação nacional, um estado permanente de
guerra contra nós mesmos.
Esta
é a conclusão que poderemos sugerir, a fechar: um país em que as
mulheres só podem ser a sua metade está condenado a ter apenas
metade do seu futuro.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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