2
O
Lobo dormia mal. Respirava com dificuldades. Seus ossos e seus dentes
doíam. Passava os dias deitado. Poderia caminhar e salvar-se, mas
não queria; nenhuma voz tinha força suficiente para tirá-lo
daquele estado. Às vezes, na gelada escuridão antes do amanhecer,
fixava os olhos no teto, fumando, e viajava. Isso lhe trazia algum
alívio, mas não ocorria com frequência. Despertando ao seu lado a
Galega quase sempre o encontrava com os dentes apertados pelas
secretas dores da memória ou do corpo.
Lobo
tinha a cara escondida pela barba. Não fazia a barba porque sentia
impulsos de quebrar o espelho a socos. Quanto tempo fazia que não ia
pescar peixe-rei? As iscas apodreciam nas linhas. Quando tomaria a
decisão de calafetar o bote? Se tomasse o sol do verão, no estado
em que se encontrava a madeira, o bote não chegaria ao outono.
Naquela
madrugada o Lobo ouviu um galo cantar: nenhum outro respondeu.
Levantou-se, nervoso, para esquentar café e no chão da cozinha viu
sua sombra sem cabeça.
Quando
em pleno dia o céu escureceu, a Galega viu a tormenta aproximar-se.
Antes, nos dias chuvosos, o Lobo assobiava. Somente nos dias de chuva
sabia assobiar. Mas agora não assobiava nunca. A Galega esquentou o
guisado do jantar da noite anterior e serviu somente um copo de
vinho. Os dois tomaram do mesmo copo e, no entanto, o Lobo não
adivinhou o segredo dela. Ela tinha dito: “Tenho um segredo”. Ele
resmungou qualquer coisa, pediu mais vinho, não olhou e nem falou
mais nada; depois foi caminhando até o ancoradouro.
A
Galega apertou as mãos, cravando-se as unhas, e sufocou a vontade de
chorar. Queria que ele percebesse por si só, sem ter que dizer nada.
A criançada da ilha andava ao seu redor, seguindo-a como galinhas,
excitados, e isso era muito mais seguro que a menstruação que não
vinha fazia dois meses. A Galega pensava que aquele era o melhor dia
para que ele percebesse, porque há dez anos atrás, naquele mesmo
dia, ela tinha ouvido sua voz pela primeira vez.
3
A
Galega cozinhava num casarão cheio de coisas que valiam muito
dinheiro. Era uma cozinheira de mão cheia e, por isso, lhe pagavam
bem e não a obrigavam a levantar-se cedo. Ela punha o despertador
para as sete horas, mas somente para ter o gostinho de continuar
dormindo, quentinha debaixo das cobertas.
Como
de costume, uma manhã se levantou para ir ao banheiro e topou com um
cara mascarado que lhe encostou uma pistola no peito.
– O
que é isso, homem? – disse, assim que pôde engolir saliva. –
Desvia isso daí.
Discutiram.
– Espera
um momento – dizia ela. – Eu não aguento mais. Foi por isso que
levantei e não aguento mais. Espere um momento. Não estou
aguentando, homem!
O
homem disse que tinha que consultar o chefe. O chefe era mais alto e
mais fone. Também tinha uma meia enfiada na cabeça. Ele disse que
podia ir, mas com a porta aberta. Ela viu suas mãos, os dedos
pálidos e ossudos segurando a arma e essa foi a primeira vez que ela
recebeu, através dos dois buracos na meia, o fogo dos olhos dele.
Quando entrou no banheiro já tinha perdido a vontade e ficou
furiosa.
Depois,
a amarraram e a jogaram no chão do quarto onde estavam os outros.
Não havia jeito de fazê-la ficar calada.
Gritava:
– Levem
tudo, malandros! Limpem tudo! E não esqueçam de passar a flanela!
Tiveram
que amordaçá-la.
– Querem
café? Servirei com cianureto!
Passaram-se
os dias. Uma manhã, quando saiu para fazer compras, ela o encontrou
encostado em um muro, numa esquina, fumando. Reconheceu-o pelas mãos,
pelo fogo dos olhos e pela voz rouca que a convidou para um encontro
no domingo à noite, em um café do centro. Ela o olhou, querendo
odiá-lo e querendo dizer-lhe:
– Espere,
que irei com a polícia.
Naquele
domingo, fechou-se no seu quarto e não foi. A partir de então
esteve lutando, dias e noites, contra a vontade de ir e encontrá-lo
de novo.
O
domingo da semana seguinte amanheceu ensolarado. A Galega saiu para
caminhar. Andou pelos parques e quando anoiteceu suas pernas a
levaram ao café só pela curiosidade de saber como era. Sentou-se e
pediu um café grande. Pôs açúcar. Estava mexendo com a colherinha
quando o viu em pé, à sua frente.
– Você
demorou, hem? – disse ele.
Parecia
que seus dentes estavam ficando moles.
– Acaba
logo com isso – disse ele.
– Está
quente – balbuciou ela.
Da
primeira noite ela iria recordar, para sempre, o barulho dos sapatos
caindo e a medalha de Santa Rita que no dia seguinte não estava mais
em seu pescoço.
E
ele disse a ela: “Ao seu lado, me sinto mais feliz que pobre quando
tira a sorte grande”, e ela era um carrapicho grudado para sempre
no colo dele, e não havia nada que não fosse aplaudido, nada que
não fosse perdoado.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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