quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Cinzas

2
O Lobo dormia mal. Respirava com dificuldades. Seus ossos e seus dentes doíam. Passava os dias deitado. Poderia caminhar e salvar-se, mas não queria; nenhuma voz tinha força suficiente para tirá-lo daquele estado. Às vezes, na gelada escuridão antes do amanhecer, fixava os olhos no teto, fumando, e viajava. Isso lhe trazia algum alívio, mas não ocorria com frequência. Despertando ao seu lado a Galega quase sempre o encontrava com os dentes apertados pelas secretas dores da memória ou do corpo.
Lobo tinha a cara escondida pela barba. Não fazia a barba porque sentia impulsos de quebrar o espelho a socos. Quanto tempo fazia que não ia pescar peixe-rei? As iscas apodreciam nas linhas. Quando tomaria a decisão de calafetar o bote? Se tomasse o sol do verão, no estado em que se encontrava a madeira, o bote não chegaria ao outono.
Naquela madrugada o Lobo ouviu um galo cantar: nenhum outro respondeu. Levantou-se, nervoso, para esquentar café e no chão da cozinha viu sua sombra sem cabeça.
Quando em pleno dia o céu escureceu, a Galega viu a tormenta aproximar-se. Antes, nos dias chuvosos, o Lobo assobiava. Somente nos dias de chuva sabia assobiar. Mas agora não assobiava nunca. A Galega esquentou o guisado do jantar da noite anterior e serviu somente um copo de vinho. Os dois tomaram do mesmo copo e, no entanto, o Lobo não adivinhou o segredo dela. Ela tinha dito: “Tenho um segredo”. Ele resmungou qualquer coisa, pediu mais vinho, não olhou e nem falou mais nada; depois foi caminhando até o ancoradouro.
A Galega apertou as mãos, cravando-se as unhas, e sufocou a vontade de chorar. Queria que ele percebesse por si só, sem ter que dizer nada. A criançada da ilha andava ao seu redor, seguindo-a como galinhas, excitados, e isso era muito mais seguro que a menstruação que não vinha fazia dois meses. A Galega pensava que aquele era o melhor dia para que ele percebesse, porque há dez anos atrás, naquele mesmo dia, ela tinha ouvido sua voz pela primeira vez.

3
A Galega cozinhava num casarão cheio de coisas que valiam muito dinheiro. Era uma cozinheira de mão cheia e, por isso, lhe pagavam bem e não a obrigavam a levantar-se cedo. Ela punha o despertador para as sete horas, mas somente para ter o gostinho de continuar dormindo, quentinha debaixo das cobertas.
Como de costume, uma manhã se levantou para ir ao banheiro e topou com um cara mascarado que lhe encostou uma pistola no peito.
O que é isso, homem? – disse, assim que pôde engolir saliva. – Desvia isso daí.
Discutiram.
Espera um momento – dizia ela. – Eu não aguento mais. Foi por isso que levantei e não aguento mais. Espere um momento. Não estou aguentando, homem!
O homem disse que tinha que consultar o chefe. O chefe era mais alto e mais fone. Também tinha uma meia enfiada na cabeça. Ele disse que podia ir, mas com a porta aberta. Ela viu suas mãos, os dedos pálidos e ossudos segurando a arma e essa foi a primeira vez que ela recebeu, através dos dois buracos na meia, o fogo dos olhos dele. Quando entrou no banheiro já tinha perdido a vontade e ficou furiosa.
Depois, a amarraram e a jogaram no chão do quarto onde estavam os outros. Não havia jeito de fazê-la ficar calada.
Gritava:
Levem tudo, malandros! Limpem tudo! E não esqueçam de passar a flanela!
Tiveram que amordaçá-la.
Querem café? Servirei com cianureto!
Passaram-se os dias. Uma manhã, quando saiu para fazer compras, ela o encontrou encostado em um muro, numa esquina, fumando. Reconheceu-o pelas mãos, pelo fogo dos olhos e pela voz rouca que a convidou para um encontro no domingo à noite, em um café do centro. Ela o olhou, querendo odiá-lo e querendo dizer-lhe:
Espere, que irei com a polícia.
Naquele domingo, fechou-se no seu quarto e não foi. A partir de então esteve lutando, dias e noites, contra a vontade de ir e encontrá-lo de novo.
O domingo da semana seguinte amanheceu ensolarado. A Galega saiu para caminhar. Andou pelos parques e quando anoiteceu suas pernas a levaram ao café só pela curiosidade de saber como era. Sentou-se e pediu um café grande. Pôs açúcar. Estava mexendo com a colherinha quando o viu em pé, à sua frente.
Você demorou, hem? – disse ele.
Parecia que seus dentes estavam ficando moles.
Acaba logo com isso – disse ele.
Está quente – balbuciou ela.
Da primeira noite ela iria recordar, para sempre, o barulho dos sapatos caindo e a medalha de Santa Rita que no dia seguinte não estava mais em seu pescoço.
E ele disse a ela: “Ao seu lado, me sinto mais feliz que pobre quando tira a sorte grande”, e ela era um carrapicho grudado para sempre no colo dele, e não havia nada que não fosse aplaudido, nada que não fosse perdoado.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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