Meses
não são dias, e a vida era aquela, no chão da choupana. Nhô
Augusto comia, fumava, pensava e dormia. E tinha peque nas
esperanças: de amanhã em diante, o lado de cá vai doer menos, se
Deus quiser... — E voltou a recordar todas as rezas aprendidas na
meninice, com a avó. Todas e muitas mais, mesmo as mais bobas de
tanta deformação e mistura: as que o preto engrolava, ao lavar-lhe
com creolina a ferida da perna, e as que a preta murmurava, benzendo
a cuja d’água, ao lhe dar de beber.
E
somente essas coisas o ocupavam, porque para ele, féria feita, a
vida já se acabara, e só esperava era a salvação da sua alma e a
misericórdia de Deus Nosso Senhor. Nunca mais seria gente! O corpo
estava estragado, por dentro, e mais ainda a ideia. E tomara um tão
grande horror às suas maldades e aos seus malfeitos passados, que
nem podia se lembrar; e só mesmo rezando.
Espantava
as ideias tristes, e, com o passar do tempo, tudo isso lhe foi dando
uma espécie nova e mui serena de alegria. Esteve resignado, e fazia
compridos progressos na senda da conversão.
Quando
ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o preto fabricara,
já tinha os seus planos, menos maus, cujo ponto de início consistia
em ir para longe, para o sitiozinho perdido no sertão mais longínquo
uma data de dez alqueires, que ele não conhecia nem pensara jamais
que teria de ver, mas que era agora a única coisa que possuía de
seu. Antes de partir, teve com o padre uma derradeira conversa, muito
edificante e vasta. E, junto com o casal de pretos samaritanos, que,
ao hábito de se desvelarem, agora não o podiam deixar nem por nada,
pegou chão, sem paixão.
Largaram
à noite, porque o começo da viagem teria de ser uma verdadeira
escapada. E, ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada,
abriu os braços em cruz, e jurou: — Eu vou p’ra o céu, e vou
mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... P’ra o
céu eu vou, nem que seja a porrete!...
E
os negros aplaudiram, e a turminha pegou o passo, a caminho do
sertão.
Foram
norte a fora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de dia e
viajando de noite, como cativos amocambados, de quilombo a quilombo.
Para além do Bacupari, do Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria,
do Peixe-Bravo, dos Tachos, do Tamanduá, da Serra-Fria, e de todos
os muitos arraiais jazentes na reta das léguas, ao pé dos verdes
morros e dos morros de cristais brilhantes, entre as varjarias e os
cordões-de-mato. E deixavam de lado moendas e fazendas, e as
estradas com cancelas, e roçarias e sítios de monjolos, e os
currais do Fonseca, e a pedra quadrada dos irmãos Trancoso; e mesmo
as grandes casas velhas, sem gente mais morando, vazias como os seus
currais. E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores de sombra das
caatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à beira das lagoas
com patos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio das Rãs
e o Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de
pedregulho, contra as serras azuis e as serras amarelas, sempre. L
Depois, por baixadas, com outeiros, terras mansas. E em paragens
ripuárias, mas evitando a linha dos vaus, sob o voo das garças, —
os caminhos por onde as boiadas vêm, beirando os rios.
E
assim se deu que, lá no povoado do Tombador, — onde, às vezes,
pouco às vezes e somente quando transviados da boa rota, passavam
uns bruaqueiros tangendo tropa, ou uns baianos corajosos migrando
rumo sul, — apareceu, um dia, um homem esquisito, que ninguém não
podia entender.
Mas
todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e
compreender deixaram para depois.
Trabalhava
que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma
ganância e nem se importava com acrescentes: o que vivia era
querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu
fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse. E só
pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou nenhuma conversa.
O
casal de pretos, que moravam junto com ele, era quem mandava e
desmandava na casa, não trabalhando um nada e vi vendo no estadão.
Mas, ele, tinham-no visto mourejar até dentro da noite de Deus,
quando havia luar claro.
Nos
domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso: batendo mato, o dia
inteiro, sem sossego, sem espingarda nenhuma e nem nenhuma arma para
caçar; e, de tardinha, fazendo parte com as velhas corocas que
rezavam o terço ou os meses dos santos. Mas fugia às léguas de
viola ou sanfona, ou de qualquer outra qualidade de música que
escuma tristezas no coração.
Quase
sempre estava conversando sozinho, e isso também era de maluco,
diziam; porque eles ignoravam que o que fazia era apenas repetir,
sempre que achava preciso, a fala final do padre:
— “Cada
um tem a sua hora e a sua vez: você há-de ter a sua”. — E era
só.
E
assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho
deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta
aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não
senhor.
Quem
quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria
grossa bobagem, porquanto ele não tinha tentações, nada desejava,
cansava o corpo no pesado e dava rezas para a sua alma, tudo isso sem
esforço nenhum, como os cupins que levantam no pasto murundus
vermelhos, ou como os tico ticos, que penam sem cessar para levar
comida ao filhote de pássaro-preto bico aberto, no alto do mamoeiro,
a pedir mais.
Esta
última lembrança era do povo do Tombador, já que em toda a parte
os outros implicam com os que deles se desinteressam, e que o pessoal
nada sabia das alheias águas passadas, e nem que o negro e a negra
eram agora pai e mãe de Nhô Augusto.
Também,
não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das
mulheres, não falava junto em discussão. Só o que ele não podia
era se lembrar da sua vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida,
fim-de-mundo, cada dia que descia ajudava a esquecer.
Guimarães
Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga
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