terça-feira, 23 de outubro de 2018

Uma mulher fantástica

Ela perguntou como ele reagiria se um dia uma tia hipotética dela viesse hospedar-se com eles. Ele respondeu:
E desde quando a sua tia solteira de Surupinga se chama Hipotética? Eu sei que ela se chama Amanda. Você vive falando nela.
Está bem. A tia não é hipotética. É a tia Amanda.
A visita dela é hipotética.
Também não.
Eu sou hipotético.
Não. Você é um homem compreensivo, que receberá a tia Amanda como se ela fosse a sua tia também. Porque você sabe como eu gosto dela.
Você não gosta da sua tia Amanda. Você adora a sua tia Amanda. A tia Amanda é seu ídolo.
Eu sempre achei ela um exemplo de mulher moderna, ativa, independente...
Que nunca saiu de Surupinga.
Como não? A tia Amanda mora em Surupinga, mas conhece o mundo todo! Já fez até um curso de respiração cósmica na Índia.
Respiração cósmica?
Você aprende a respirar no ritmo do Universo, muito mais lento e profundo do que o ritmo da Terra.
E do que o de Surupinga.
Ela sempre volta para Surupinga porque cuida dos negócios da família. A tia Amanda também é uma executiva de sucesso. É uma mulher fantástica.
E quando seria essa visita hipotética da tia Amanda?
Ouvem a campainha da porta.
Deve ser ela agora!
Espera. E onde a tia Amanda vai dormir?
Aqui, no sofá.
No sofá? Não vai ser desconfortável, para uma senhora?
E quem disse que ela é uma senhora?

* * *
Tia Amanda não é uma senhora. É uma moça. Linda. Elegante. Fantástica.
Titia!
Celinha! Querida!
Entre!
Preciso de um homem para carregar esta mala.
Por sorte, eu tenho um em casa.
Tia Amanda examina-o dos pés à cabeça.
Mmm. Então esse é o famoso... Como é mesmo o nome?
Reinaldo.
Quem diz o nome é a Celinha, porque Reinaldo está paralisado. Fascinado. Embasbacado.
Finalmente, consegue falar.
E essa é a famanda tia Amosa. Ahn, a famosa tia Amanda.
Tia Amanda olha em volta da sala, antes de dar seu veredito com um sorriso irônico:
Acolhedora.
Você gosta?
Um dia vocês se lembrarão deste período em suas vidas e se perguntarão “Como pudemos ser felizes com tão pouco?” É o que os franceses chamam de nostalgie de la privation...
E como vão todos em Surupinga?
Ninguém vai em Surupinga, minha querida. Em Surupinga só se fica.
E você, titia? Arrasando corações, como sempre?
Você sabe o que eu penso dos homens, Celinha. Homem só serve para abrir pote e segurar porta.
Ela se dá conta da presença de Reinaldo e acrescenta:
Desculpe, Roberto. E para carregar mala.
E os negócios?
Cada vez melhores e mais aborrecidos. Eu precisava dar uma saída. Como Paris nesta época é muito chuvosa e Nova York tem brasileiro demais, decidi vir visitar minha sobrinha querida, que não via há tanto tempo.
E conhecer meu marido.
Quem? Ah, isso também... Mas chega de falar só de mim. Vamos falar de você. Você estava com saudade de mim, estava?

* * *
Mais tarde, Reinaldo e Celinha no quarto:
Você disse que ela era fantástica, mas esqueceu um detalhe.
Qual?
Ela, além de fantástica, é... Fantástica!
Você conversaram bastante enquanto eu fazia o jantar...
Conversamos. Combinamos que ela vai me dar aulas de respiração cósmica.
Celinha ficou pensativa, antes de dizer:
Não sei se vai ter tempo...
Por quê?
Ela vai embora amanhã de manhã.
Já? Por quê?
Os negócios em Surupinga. Estão exigindo a presença dela...
Ela lhe disse?
Não. Ela ainda não sabe.
Celinha chegara à conclusão de que as pessoas às vezes podem ser fantásticas demais.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo

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