terça-feira, 24 de julho de 2018

Por que escrevo

O que mais desejei fazer nos últimos dez anos foi transformar escrita política em arte. Meu ponto de partida é sempre um sentimento de proselitismo, uma sensação de injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo: “Vou produzir uma obra de arte”. Escrevo porque existe uma mentira que pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção, e minha preocupação inicial é atingir um público. Mas não conseguiria escrever um livro, nem um longo artigo para uma revista, se não fosse também uma experiência estética. Quem se dispuser a examinar meu trabalho perceberá que, mesmo quando é uma clara propaganda, contém muito do que um político de tempo integral consideraria irrelevante. Não sou capaz de abandonar por completo a visão de mundo que adquiri na infância, nem quero. Enquanto viver e estiver com saúde, continuarei a ter um forte apego ao estilo da prosa, a amar a superfície da Terra, a sentir prazer com objetos sólidos e fragmentos de informações inúteis. De nada adianta tentar reprimir esse meu lado. O trabalho é conciliar os gostos e os desgostos arraigados com as atividades essencialmente públicas, não individuais, que esta época impõe a todos nós.
Não é fácil. Suscita problemas de construção e de linguagem e, de uma nova maneira, o problema da veracidade. Darei apenas um exemplo do tipo mais grosseiro de dificuldade que surge. Meu livro sobre a Guerra Civil Espanhola, Homage to Catalonia [Homenagem à Catalunha], é, claro, abertamente político, mas a maior parte dele foi escrita com algum distanciamento e preocupação com a forma. Empenhei-me muito em contar toda a verdade sem violar meus instintos literários. Mas entre outras coisas o livro contém um longo capítulo, repleto de citações de jornais e coisas do gênero, que defende trotskistas acusados de tramar com Franco. Sem dúvida um capítulo assim, que após um ou dois anos perderia o interesse para qualquer leitor comum, deve arruinar o livro. Um crítico que respeito me passou um sermão sobre isso. “Por que incluiu todo esse material?”, perguntou. “Transformou em jornalismo o que poderia ter sido um bom livro.” O que ele disse era verdade, mas eu não poderia ter feito de outra maneira. Ocorreu que eu sabia o que poucas pessoas na Inglaterra tiveram a oportunidade de saber: que homens inocentes estavam sendo falsamente acusados. Se não estivesse revoltado com isso, jamais teria escrito o livro.
De um modo ou de outro, esse problema reaparece. O problema da linguagem é mais sutil, e sua discussão seria mais demorada. Direi apenas que nos últimos anos procurei escrever de forma menos pitoresca e com mais exatidão. De qualquer maneira, creio que na hora em que aperfeiçoamos um estilo de escrita sempre o superamos. A revolução dos bichos foi o primeiro livro em que tentei, com plena consciência do que fazia, amalgamar os propósitos político e artístico. Faz sete anos que não escrevo um romance, mas espero escrever outro muito em breve. Será fatalmente um fracasso, todo livro é um fracasso, porém tenho uma clara noção do tipo de livro que pretendo escrever.
Reexaminando as duas últimas páginas, mais ou menos, noto que fiz parecer que meus motivos para escrever estiveram todos voltados à causa pública. Não quero que seja essa a impressão definitiva. Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa. Ninguém jamais se incumbiria de tal coisa se não fosse impelido por um demônio ao qual não se pode resistir nem entender. Porque todo mundo sabe que esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê chamar a atenção aos berros. E no entanto também é verdadeiro que é impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade. A boa prosa é como uma vidraça. Não sei dizer com certeza qual de meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido. E, ao reexaminar minha obra, percebo que foi sempre onde me faltou um propósito político que escrevi livros sem vida e fui induzido a escrever passagens floreadas, frases sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, falsidades.
George Orwell, in Dentro da baleia e outros ensaios

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