Um
dos nossos vizinhos era ríspido e até bruto com seu filho, mas
nunca com seu cão. Na ingenuidade dos meus dez anos, me perguntava
como um pai — qualquer pai — podia ser mais afetuoso com um bicho
do que com o próprio filho.
Hoje,
quando vejo crianças abandonadas e em total desgraça, e cães serem
tratados com regalias de príncipes ou de políticos, minha descrença
na humanidade tende ao infinito. Mas essa não é uma crônica sobre
o niilismo, e sim sobre um vira-lata que assombrou minha infância.
Eu
não sentia um apego especial por esse bicho, nem pelos macacos e
araras do quintal do meu vizinho, preferia brincar no porão da casa
dele, onde havia brinquedos fabulosos; um deles era o exército em
miniatura de dois países que participaram da Primeira Guerra
Mundial, um exército com soldadinhos de papel machê e toda a
parafernália bélica. O pai do meu amigo conhecia muita coisa sobre
essa guerra, tão distante no tempo e no espaço que parecia irreal.
Aos sábados eu brincava com esse pai, que venerava o Exército
prussiano e sua disciplina férrea; eu venerava o guaraná Tuchaua e
a tapioquinha com queijo coalho da merenda da tarde. Às vezes,
quando eu e o pai combatíamos em exércitos antagônicos, um uivo
lamentoso interrompia nossa guerra, selando uma espécie de
armistício. O dono ia atrás do seu cão, e assim terminava nossa
brincadeira bélica.
Quando
isso acontecia, eu me juntava ao meu amigo, que jogava baralho com
sua mãe na varanda do andar de cima, de onde víamos o pai e o cão
passeando no quintal. Mais de uma vez, entre um blefe e uma batida do
carteado, ouvi a mãe dizer: “Detesto esse animal”.
Fly
era o nome do vira-lata: um bicho feio, a orelha direita estropiada
em alguma batalha de rua, o focinho grande demais na cabecinha
achatada, pernas finas e tortas, e no traseiro um rabo tão atrofiado
que parecia um toco. Mas Fly me cativava com seu olhar terno; não
poucas vezes, quando ele ficava sozinho no quintal, à espera de seu
dono que demorava a chegar, me olhava com uma expressão aflitiva de
quem pede socorro. Isso é o que Fly tinha de mais humano, ou de
menos bestial.
Numa
noite de dezembro de 1962, o pai do meu amigo morreu subitamente. No
meio da agitação dos festejos natalinos na minha casa e do luto na
casa vizinha, não vi o cão. Pouco tempo depois da missa de sétimo
dia, meu amigo e sua mãe foram de vez para o Rio. A casa mobiliada,
mas trancada, ficou silenciosa.
Mais
de um mês depois, na tarde triste da Quarta-feira de Cinzas, minha
mãe me disse: “Tens que ver uma coisa”.
Entramos
no jardim da casa abandonada e descemos uma estreita rampa de pedra
que terminava no quintal dos fundos. O cubo de arame dos macacos,
vazio; e as árvores, sem as araras, estavam quietas. Antes que minha
mãe apontasse para o porão, vi Fly encostado na grade de ferro. O
cão, que a mãe do meu amigo abandonara longe da casa, tinha voltado
para rever seu dono. Agora Fly era uma carcaça, a ossada do focinho
enganchada na grade. Um formigueiro da cor de fogo crescia na pelagem
preta.
“Esse
bichinho morreu de tanta saudade”, lamentou minha mãe.
Mais
de quarenta anos depois, quando ela leu as primeiras frases de um
romance que eu acabara de publicar, perguntou: “Esse cão do Cinzas
do Norte não é o Fly, do nosso vizinho?”
“Ele
mesmo”, respondi. “Mas com outro nome, outra vida e outro dono.”
“Conta
outra”, ela disse. E, olhando para mim, sentenciou: “Tu podes
enganar teus leitores, mas não tua mãe”.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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