Bem-aventurados
os mansos: porque eles possuirão a terra. (Mateus, V, 4)
I
Desde
a infância procuraram meter-me na cabeça que devia evitar a
companhia de João Batista, o melhor amigo que já tive. A começar
pelo meu irmão:
— Não
vê, José, que Batista está abusando de você? Todos os dias come
da sua merenda, copia seus exercícios escolares e ainda banca o
valente com os outros meninos, fiado nos seus braços. Todavia,
quando os moleques lhe deram aquela surra, nem se abalou para
ajudá-lo.
Era
uma injustiça. Batista não viera em meu auxílio, como explicou em
seguida, porque fora acometido de cãibra justamente no momento em
que fui agredido.
II
Após
o grupo, veio o ginásio e lá em casa meus pais, unidos a meu irmão,
na faina de me separar do amigo, pouco variavam de estribilho:
— Você
precisa deixar de ser burro, de ser idiota. Batista está
aproveitando do seu trabalho como uma sanguessuga. Você estuda e
ele, copiando suas provas, recebe as melhores notas da classe. E os
discursos? Você os escreve, para que seu amigo, lendo-os apenas,
fique com a glória de bom orador e de líder da turma.
Tio
Eduardo, o mais novo dos irmãos de mamãe, que à falta de um ofício
morava conosco havia anos, deixava sua observação para o final:
— Além
de tudo, é filho daquele mandrião do Honório, o caça-dotes!
Não
adiantava argumentar com meus pais. Muito menos com titio, que fora
noivo da mãe de Batista, mulher bonita e rica.
Discutir
seria pior. Ficavam irritados e me agrediam com uma torrente de
adjetivos dificilmente toleráveis por pessoas de maior
sensibilidade.
Ante
essa perspectiva desfavorável, contentava-me em saber que não
tinham razão e em tornar cada vez mais sólida a minha amizade pelo
colega.
De
fato, ajudava-o nos exames e discursos. Também não era menos
verdade ser ele mais brilhante do que eu. Dava-lhe uns poucos dados,
que dependiam da minha boa memória, e Batista, desenvolvendo-os com
inteligência, fazia magníficas provas.
Quanto
aos discursos, poderia escrevê-los sem a minha colaboração e bem
superiores aos meus. Só não os redigia em virtude da preguiça que
o assaltava nas vésperas de pronunciá-los, ou mesmo por saber que
esse trabalho me dava prazer.
Que
me custava prestar-lhe ajuda se, além de gago e tímido, eu não
pretendia seguir carreira que dependesse da oratória?
III
Não
conseguindo convencer-me, meus parentes mudaram de tática. Em vez da
reiteração das censuras, que resultavam inócuas, passaram a
meter-me em ridículo. Serviu de pretexto para a nova ofensiva uma
namorada que me foi tomada por Batista. Eu gostava da moça — uma
ruiva de dentes alvos e miúdos —, razão por que quase rompi com o
amigo. Desculpei-o posteriormente ao saber que assim procedera pelo
temor de que a ruiva me levasse a praticar alguma tolice. Eu estava
apaixonado e ela era bastante leviana. Tanto era — dizia-me o
companheiro — que me abandonara por ele! O argumento me satisfez e
não mais me incomodaram as pequenas ironias que a todo instante me
atiravam.
IV
Quando
mais tarde, juntos, entramos para o Ministério da Fazenda, disseram
os da minha família que eu ditara para meu colega as provas do
concurso e isso, de certo modo, explicava o primeiro lugar
conquistado por Batista.
Sórdida
mentira! Apenas o auxiliara na prova de matemática, matéria da qual
ele não tinha grandes conhecimentos. Mas quem deixaria de ajudar seu
semelhante numa contingência dessas?
V
Os
que não viam com bons olhos a nossa amizade nos deram tréguas por
algum tempo.
Não
demoraram, porém, em romper as hostilidades contra nós. Serviram de
motivo as promoções, que vieram um ano após o concurso. Para
cúmulo do azar, o despeito dos nossos colegas de trabalho fez com
que considerassem uma injustiça a promoção do meu companheiro. (Eu
é que merecia ser promovido. O acesso de Batista à classe superior
— segundo eles — se devia à permanente adulação com que
cercava nossos chefes.)
Argumentavam
de diferentes maneiras, mas no fundo apenas tentavam disfarçar uma
grosseira inveja de alguém que subia pelos próprios méritos.
À
minha casa chegaram esses murmúrios e ninguém fez o menor
comentário. Fizeram pior: forçavam um silêncio constrangedor todas
as vezes que o nome do meu amigo vinha à baila. Punham-se a
olhar-me, atentamente, sem pronunciar uma palavra sequer.
Dissimulei
o desagrado que o procedimento dos meus parentes me provocava e
deixei de falar do companheiro na presença deles.
Enquanto
isso, os anos passando, outras promoções vieram. Em algumas fui
preterido, em outras não, ao passo que João Batista foi galgando
postos, até chegar a chefe da minha seção.
VI
Por
essa época, já me assaltara insistente melancolia. Sentia-me
deslocado em casa, uma necessidade de andar pela noite adentro, sem
parar, cansando-me, evitando os pensamentos. Só me acalmava a
companhia de Batista, meu guia e conselheiro.
Certo
dia, ao largar o serviço, deixei-me ficar no banco de uma pracinha,
a remoer ideias infelizes, um desejo de diluir-me nas nuvens claras
que se mesclavam com o azul do céu. A meu lado, uma jovem —
silenciosa e triste — parecia compartilhar do mesmo desamparo que
me afligia.
A
identidade de angústia nos aproximou. Conversamos e um mês depois
fomos a uma igreja gótica, onde um padre holandês e rubicundo disse
muita coisa que não entendemos, mas como nos declarasse casados e
fosse meu padrinho o bom amigo Batista, senti-me feliz apesar de não
se encontrar no templo nenhum dos meus parentes. Ou por essa mesma
razão.
VII
Mal
decorrera um ano de casados, a tranquilidade do nosso lar, até então
completa, veio a ser abalada por um incidente de mínima importância.
Para uma promoção a que tinha direito, meu companheiro indicou
outro funcionário. Sendo o beneficiado sobrinho do ministro,
aconselhei Batista a não sugerir meu nome para a vaga, pois a minha
indicação poderia, no futuro, prejudicar-lhe a carreira funcional.
Assim
não entendeu minha esposa. Pensando que eu fora deliberadamente
preterido, cortou relações com meu amigo, não mais lhe permitindo
entrar em nossa casa. Desse dia em diante, tornou-se irritadiça,
declarando a todo momento que se sacrificara por um imbecil.
Amargurado,
eu não fazia nenhum reparo às acusações, evitando o confronto,
como sempre foi do meu feitio. Deixava-me ficar pelos bancos das
praças, invejando a insensibilidade das nuvens.
VIII
Não
me sendo possível deixar de aparecer em casa e, nela, escapar aos
insultos de Branca, resolvi fingir-me doido.
Após
duas semanas, a trepar nas mesas, os olhos arregalados, a gritar ou
quebrando louças, eu já estava saturado do meu próprio espetáculo.
Para aumentar-me o desalento, minha mulher não cuidava de chamar o
médico que constatasse minha insanidade. Contentava-se em olhar-me e
dizer:
— Não
é que esse cretino está maluco mesmo! Que se dane. A gente casa com
uma toupeira e ainda tem que lhe aturar as maluquices.
Falava
e se recolhia ao silêncio, espiando-me com seus olhos maus.
Entretanto,
aquele que sempre cuidou de mim e, em várias circunstâncias, me
livrou de situações difíceis, veio em meu socorro. Tão logo soube
do que se passava, buscou-me em casa para internar-me em um hospício.
Minha esposa, que me desejava ter à mão, a fim de descarregar sua
raiva, não concordou com a providência. Aos gritos, esgotou o
repertório de palavrões, sem que tomassem em consideração o seu
protesto. E fui internado na poética casa de saúde da rua Lopes
Piedade.
Enquanto
corriam os meses, calado, eu ficava a observar os meus companheiros.
Bons e espirituosos amigos: trocaram o meu nome pelo de Alvarenga —
Alvarenga Peixoto. Talvez pelo meu ar tristonho ou por ter sempre os
olhos postos nas magnólias do parque.
IX
Uma
manhã — eu estava de bom humor e um tanto loquaz — conversava
com Napoleão sobre o desastre de suas tropas em Waterloo, divergindo
dele, que afirmava ter sido derrotado somente por falta de queijos
suíços na intendência do seu exército, quando um guarda me chamou
a mandado do diretor do hospício.
Na
sala da diretoria encontrei meu irmão e um homem de olhinhos
espertos, que me apresentaram como sendo o delegado João Francisco.
Usava um pequeno bigode empastado de vaselina e foi logo me dizendo:
— Estou
aqui para esclarecer fatos relativos a uma denúncia apresentada por
pessoas de sua família. Alegam que o senhor jamais sofreu das
faculdades mentais e se encontra neste hospício em virtude de uma
trama urdida pela sua esposa com a conivência de João Batista
Azeredo. De tudo isso já apurei que os dois estão vivendo juntos.
Percebendo
aonde ele iria chegar, não me contive e comecei a berrar:
— É
uma calúnia! Estou louco! Doido varrido!
Distribuí
murros, quebrei armários, os óculos do diretor. Antes que
alcançasse o bigodinho vaselinado do policial, fui subjugado pelos
guardas.
X
Agora,
livre da camisa de força e dos enfermeiros, tenho meditado sobre os
acontecimentos de dias atrás e sou levado a acreditar que meu
companheiro esteja amasiado com Branca. Não posso desprezar essa
possibilidade, mesmo sabendo do ódio que nutriam um pelo outro.
Naturalmente Batista descobriu que minha mulher planejava retirar-me
daqui e, para evitar que tal acontecesse, foi ao extremo da renúncia,
atraindo-a para si. Pobre amigo.
Murilo
Rubião, in Obra completa
Nossa! Que conto é esse? Amei! Vou ler mais Murilo Rubião.
ResponderExcluirObrigada
Uau que conto!
ResponderExcluir