Disse
Riobaldo e eu digo digo “amém”. “Todo-o-mundo é louco. O
senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso que se carece
principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Eu,
cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água
de todo rio... Uma só, para mim, é pouca... Rezo cristão,
católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu
Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no
Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de
pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles...”.
Espantei-me quando li. Ecumenismo maior não pode existir. Se o
Riobaldo fosse cardeal, ah!, SS Bento XVI ia ter um trabalhão...
Acontece
assim comigo também: não perco ocasião de religião. Tenho sangue
de católico. Meu avô ia ser padre. Se tivesse sido, este texto não
existiria porque eu não existiria... Lá no so-brado de vidros
coloridos, no sótão, entre as telhas e o forro, ficavam guardadas
as velharias numa canastra. Entre elas, uma carta do meu avô,
interno do Caraça, já vestido de batina preta, dirigida ao seu pai,
pedindo dez tostões para comprar uma batina nova porque a sua já
estava velha. Tenho também sangue de espírita, que eles chamam de
“espiritualista” ou kardecista, qualquer nome é bom. Eu estava
em São Paulo, indo pro meu destino de táxi, puxei conversa com o
motorista, perguntei de onde ele era: “Sou de Macuco, em Minas”,
me respondeu. Acrescentei: “Macuco? Conheço muito, é perto de
Itutinga, lugar de represa. Pois eu mesmo sou de lá perto, de Lavras
do Funil...”. Funil porque o rio Grande, largo e pachorrento, de
repente era estrangulado por um funil espremido de pedras, por onde
as águas passam em fúria... Lugar bom de pescar porque os peixes se
ajuntam no final do funil, juntando força pra vencer a correnteza
rio acima. Peixe é feito gente: quando fica velho, fica com saudades
do lugar do nascimento... Não existe mais, o funil. Fizeram uma
outra represa que submergiu o funil que desapareceu, só existe na
memória dos velhos, e os peixes não precisam mais fazer força.
Revelei
que eu era de Lavras porque, quando se vem de lugar próximo, os
pensamentos e os sentimentos também ficam mais próximos. O taxista
se sentiu mais íntimo. “Lavras? Lugar de um espírito de luz,
médico que anda pelo mundo dos sofredores curando as suas
doenças...” “E como é que ele se chama?”, perguntei. “É o
doutor Augusto Silva...” Dei então uma risada e fiz uma revelação:
“O doutor Augusto Silva foi meu tio...”.
E
tenho sangue também de protestante. Como é que os protestantes
entraram na minha vida? Foi assim. A gente tinha ficado pobre por
causa da crise financeira mundial, 1929, eu ainda não havia nascido,
fomos morar em casa de pau-a-pique emprestada, longe da cidadezinha
da qual meu pai quase chegara a ser dono — dono do cinema, da
primeira máquina de picolés, de casas, de serrarias, de exportadora
de café, de dois automóveis. Rico que fica pobre tem de mudar de
cidade... Todo mundo foge dele, com medo de que o pobre antigo rico
peça dinheiro emprestado. Mas havia um homem que procurava os
pobres, era um evangelista, senhor Firmino, que não tinha dinheiro
para emprestar. Acontece que meu pai não tinha dinheiro para pagar
escola para nós e o senhor Firmino se ofereceu para ser mediador
entre a pobreza do meu pai e a riqueza dos missionários protestantes
americanos que tinham uma escola em Lavras, o Instituto Gammon. E foi
assim que passamos a frequentar igreja protestante, presbiteriana,
não por conversão espiritual, mas por necessidade econômica e
gratidão...
Pois
não é que Deus anda me pregando umas peças? Meus amigos, cada um
religioso do seu jeito, tentam me ajudar, apaziguar Deus, acender
velas, rezar... E uma amiga querida, ex-aluna, me disse com um tom
carinhoso que eu ficaria melhor se abandonasse minha incredulidade e
acreditasse na reencarnação, com a reencarnação tudo se explica e
há a certeza de um final feliz. Mas ela não imaginava que eu já
tinha resposta para essa pergunta...
“Pois
saiba você que eu acredito muito na reencarnação. Faz muito tempo
anunciei a minha conversão num artigo de nome esquisito:
‘oãçanracneeR’. Reencarnação ao contrário: não de trás
para adiante mas de diante para trás. O futuro não me interessa. Eu
nunca o vivi por isso não posso amá-lo. Não quero ir para o céu:
o tempo infinito deve ser de um tédio insuportável. E o mais
terrível é não ter saída. O céu me dá claustrofobia. Além do
que não quero evoluir. Muitas coisas não podem e não devem
evoluir: saíras de sete cores, riachinhos, ipês floridos, a Nona
sinfonia, uma preta jabuticaba...
O
que seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? Uma
jabuticabeira florida e perfumada e, depois, coberta de esferas
negras brilhantes e túrgidas depois da chuva — esse objeto é
divino, sem passado e sem futuro, presente puro destinado à
eternidade. Não posso imaginar que alguma evolução lhe possa ser
acrescentada. O que eu quero não é evoluir. O que eu quero é viver
de novo o passado que vivi, com muito mais intensidade, sem os
sentimentos de culpa com que minha religião aprisionou o meu corpo,
as minhas ideias e os meus sentimentos... Tenho tristeza pelos
pecados que não cometi... Eram pecados tão inocentes...
Assim,
quando já são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu
Pai-Nosso herético – ou erótico: ‘O prazer nosso de cada dia
dá-nos hoje...’.”
Rubem
Alves,
in Pimentas: para provocar um incêndio, não é
preciso fogo
Nenhum comentário:
Postar um comentário