sexta-feira, 6 de abril de 2018

Nordestina

Ilustração: Fernando Vilela 

Nordestina era uma cidadezinha desse tamanhinho assim da qual se dizia: eita lugarzinho sem futuro. Antônio ouviu dizer isso desde pequeno e deu por certo o fato.
Pra chegar a Nordestina tinha que se andar bem muito.
É claro que ninguém fazia isso. O que é que a pessoa ia fazer num lugar que não tinha nada pra fazer? No entanto, quem fazia o caminho inverso contava pros outros o quanto tinha andado, e então se deduzia que se o caminho de saída era um, o caminho de chegada só podia ser o mesmo.
Antônio trabalhava na prefeitura da cidade, sendo pra folha de pagamento o funcionário de número 19.
Pro prefeito ele era o moço do café.
Pro povo em geral era Antônio de dona Nazaré. Pra dona Nazaré era seu filho mais velho. Toda noite dona Nazaré pedia a Deus por um filho seu, de modo que a cada um cabiam dois pedidos por mês mais um terço de pedido. Na falta de pedido retalhado, deixava juntar três meses e então fazia mais um, inteiro, pra cada filho. Nos meses de três pedidos — abril, agosto e dezembro — ela aproveitava pra pedir saúde, dinheiro e felicidade. Nos outros nove meses do ano os meninos tinham que se contentar com saúde e dinheiro somente, o que nunca coincidia com a realidade, pois se dona Nazaré fosse mesmo boa de pedido, há muito tempo Deus lhe teria enviado uma geladeira nova. Mesmo assim ela pedia, por costume, por insistência, porque, se deixasse de pedir, Deus podia esquecer que eles existiam, motivo é que não lhe faltava.

Se palavra gastasse, duvido que tivesse sobrado algum adeus em Nordestina, haja vista a frequência com que se usava naquele tempo essa palavra.
Era tanta gente indo embora que o povo até se acostumou com os vazios que ficavam e iam tomando conta da cidade, apagando cheiros, transformando em memória frases, olhares, gestos, e a cara daqueles que não tinham retrato.
Nos dias de faxina, e portanto principalmente nas quintas, sempre apareciam objetos esquecidos por um ou outro dos que já tinham se ido, que só serviam pra devolver de rancores a abandonos superados. A esses objetos se davam diferentes fins, sendo o mais comum o fundo de uma gaveta, e o mais doído, a navalhada.
Os motivos da debandagem generalizada às vezes viravam bilhetes e alguns eram furiosamente rasgados. O motivo escrito quase sempre era um arremedo do verdadeiro e tinha por maior utilidade consolar o destinatário do que dar a se entender o remetente, pois como é que se explica, diga mesmo, que o motivo de ir embora era só o nada?
Algumas partidas eram anunciadas com antecedência devido à quantidade de providências a serem tomadas. As notícias se espalhavam de várias formas.
Vende-se mesa de fórmica c/ 4 cadeiras, sofá 2 lug., cama casal, berço, fogão e geladeira. Ótimo estado. Tratar c/ Lurdinha no cartório.
Vendo urgente casa perto da bica. Quarto, sla., quintal, banheiro dentro. Pechincha. Rua da Travessa, 38.
Vendo fiteiro ótimo ponto lucro excelente.
Fundos da Prefeitura. Falar com Marconi no local.
Por motivo de viagem vendo gado bom danado. Dois bois, três vacas, um garrote.
Nos primeiros meses, os que tinham se ido costumavam ligar aos domingos, quase sempre a cobrar, pra casa de uma vizinha. Depois as notícias iam se espaçando e se dizia deles que tinham sumido no oco do mundo, que já devia estar cheio, inclusive.
Quem olhava pro horizonte em Nordestina, querendo ou não, imaginava uma linha perpendicular a ele, a linha traçada pelo destino dos que se importavam com o destino, de modo que o povo de Nordestina todinho tinha o horizonte por uma cruz, e não por uma linha, e era por esse motivo que o verbo cruzar cabia em todo tipo de entendimento.
Entre Nordestina e a cidade que ficava antes dela, tinha uma placa com os dizeres “Bem-vindo a Nordestina”. Há quem diga que até o tempo de Antônio quase ninguém tomou conhecimento da existência dessa placa. O povo que morava da placa pra dentro imaginava uma risca no chão que separava Nordestina do resto do mundo.
O povo que morava da placa pra fora não imaginava nada, jamais pensou no assunto, e não tinha a menor ideia de que pra lá dali ainda tinha mais um pouco.
Adriana Falcão, in A máquina

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