quinta-feira, 5 de abril de 2018

As loucas

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Antes de se casarem o Haroldo avisou:
No carnaval eu sou outro.
A Heloísa aceitou. No dia a dia do casamento Haroldo seria um, no carnaval seria outro.
Quais eram as condições do outro?
Sair no sábado de carnaval para se juntar à sua turma e só voltar na quarta-feira, sem horário especificado.
Não precisar dar explicações sobre por onde andara e o que fizera entre o sábado e a quarta-feira ou sobre eventuais manchas na roupa.
Ter acesso irrestrito ao armário da Heloísa, pois era uma tradição do seu grupo sair vestido de mulher. O nome do grupo era “As Loucas”.
Heloísa só pediu esclarecimentos sobre o terceiro item. O Haroldo queria acesso aos seus vestidos, era isso? Ou o acesso incluiria chapéus, bolsas, sutiãs...
Tudo — disse Haroldo. — Inclusive perucas.
Mas de uma coisa a Heloísa poderia ter certeza, segundo Haroldo. O outro sempre voltaria. Por onde andasse e o que fizesse entre o sábado e a quarta, o outro sempre voltaria.
Heloísa concordou. E casaram-se.

* * *
No dia a dia do casamento, Haroldo era um marido exemplar. Heloísa não tinha queixa dele. No trabalho (contabilidade) também era um modelo de retidão e discrição. Mas era só se aproximar o sábado de carnaval e Haroldo começava a ficar inquieto. Examinava o guarda-roupa da Heloísa, já planejando sua fantasia.
Cadê aquele seu pretinho que eu gosto?
E quando terminava de se vestir, no sábado, Haroldo apresentava-se para Heloísa, com (por exemplo) o sutiã por cima do pretinho, e perguntava:
Como é que eu estou?
Horroroso.
Era o que ele queria ouvir. Saía para se encontrar com “As Loucas” dando risada. E só voltava na quarta-feira.

* * *
Os filhos tinham custado a aceitar o “outro” e sua loucura carnavalesca. A filha, principalmente, não podia ver o pai fantasiado de mulher que protestava.
Que mico, pai!
Mas Heloísa se acostumara, e só reclamava quando Haroldo perdia uma peruca, ou voltava com uma meia rasgada ou um salto quebrado...

* * *
E, como costuma acontecer, o tempo passou. Hoje, Haroldo não tem o mesmo ânimo de outros carnavais. “As Loucas”, que eram seis, agora são três: duas morreram, uma está proibida pelos médicos de sair de casa. Heloísa tenta animar Haroldo, em vão. Até a filha, no outro dia, disse:
Papai, eu vi um tailleurzinho que ficaria ótimo em você.
Nada adianta.
Neste sábado Haroldo chegou a botar um vestido e um chapelão, mas ficou sentado no sofá vendo o carnaval na TV — a cena mais triste que eu já vi na minha vida, disse Heloísa.
E o outro? — perguntou Heloísa ao Haroldo. — Que fim levou o outro?
É. Desta vez ele não voltou — disse Haroldo.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor Veríssimo

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