segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Entrega do leite

Uma noite meu pai me levou com ele na entrega do leite. Não havia mais carroça puxada a cavalo. Os caminhões de leite agora eram movidos a motor. Após carregar a caçamba lá na companhia de leite, seguimos o trajeto das entregas. Era bom já estar na rua antes do amanhecer. A lua ainda estava no céu, e eu podia ver as estrelas. Fazia frio, mas era excitante. Perguntava-me por que meu pai me convidara para vir com ele uma vez que dera para me bater com o amolador da navalha uma ou duas vezes por semana e não havia entre nós qualquer intimidade.
A cada parada, ele saltava e entregava uma ou duas garrafas de leite. Às vezes era queijo cottage, ou coalhada, ou manteiga e, de vez em quando, uma garrafa de suco de laranja. A maioria das pessoas deixava bilhetes nas garrafas vazias explicando o que queriam.
Meu pai ia guiando, parando e dando a partida no motor, fazendo entregas.
Bem, garoto, em que direção estamos indo agora?
Norte.
Você está certo, estamos indo pro norte.
Percorríamos as ruas, parando e seguindo adiante.
Bem, e agora? Em qual direção?
Oeste.
Não, estamos indo pro sul.
Seguimos mais um tempo, em silêncio.
Vamos supor que eu expulse você do caminhão agora e o deixe no meio da calçada. O que você faria?
Não sei.
Quero dizer, como você sobreviveria?
Bem, acho que voltaria até a última casa e pegaria o leite e o suco de laranja que você deixou nos degraus.
E depois disso? O que faria?
Encontraria um policial e contaria a ele o que você fez comigo.
Contaria, hein? E o que é que você iria contar?
Diria a ele que você quis que eu me perdesse afirmando que o “oeste” era o “sul”.
O dia começava a raiar. Logo todas as entregas ha viam sido feitas e paramos para tomar café numa lancheria. A garçonete se aproximou.
Olá, Henry – ela disse a meu pai.
Olá, Betty.
Quem é o garoto?
Este é o pequeno Henry.
É a sua cara.
Mas não tem meus miolos, acho.
Espero que não.
Fizemos o pedido. Ovos com bacon. Enquanto comíamos, meu pai disse:
Agora vem a parte mais difícil.
Qual?
Tenho que recolher o dinheiro que as pessoas me devem. Algumas delas não querem pagar.
Mas elas têm que pagar.
É o que sempre lhes digo.
Terminamos de comer e voltamos ao trabalho. Meu pai descia e batia nas portas. Eu podia ouvi-lo reclamar aos berros:
COMO, DIABOS, PENSA QUE EU VOU TER O QUE COMER? VOCÊ JÁ SECOU O LEITE, AGORA É HORA DE CAGAR O DINHEIRO!
Usava um discurso diferente a cada cobrança. Às vezes voltava com o dinheiro, em outras não.
Então o vi entrar numa espécie de cortiço. Uma porta se abriu, e uma mulher ficou ali parada, vestida num quimono de seda desatado. Ela fumava um cigarro.
Escute, boneca, preciso receber o dinheiro. Você é minha maior devedora!
Ela riu na cara dele.
Veja, boneca, me dê a metade, me pague alguma coisa, dê algum sinal.
Ela fez um anel de fumaça e em seguida o rompeu com o dedo.
Escute, você precisa me pagar – disse meu pai. – Esta é uma situação desesperadora.
Entre. Falaremos sobre isso – disse a mulher.
Meu pai entrou, e a porta se fechou. Ficou lá dentro por uma eternidade. O sol já ia alto. Quando meu pai saiu, o cabelo lhe caía sobre o rosto e ele colocava a barra da camisa para dentro das calças. Subiu no caminhão.
A mulher deu o dinheiro? – perguntei.
Esta foi a última parada – disse meu pai. – Estou exausto. Vamos devolver o caminhão e voltar para casa…
Charles Bukowski, in Misto-quente

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