Quem
voa depois da morte?
É
a folha da árvore.
Dito
de Tizangara
Não
resisti. Regressei à minha velha casa, e ali, sob a sombra do
tamarindo, me deixei afogar em lembranças. Olhei a imensa copa e
pensei: nunca fomos donos do tamarindo. Era o inverso, a árvore é
que tinha a casa. Se estendia, soberana, pelo pátio, levantando o
chão de cimento. Eu olhava aquele pavimento, assim enrugado pelas
raízes, se erguendo em placas, e me parecia um réptil mudando de
pele.
O
tamarindo mais sua sombra: aquilo era feito para abraçar saudades.
Minha infância fazia ninho nessa árvore. Em minhas tardes de
menino, eu subia ao último ramo como se em ombro de gigante e ficava
cego para assuntos terrenos. Contemplava era o que no céu se
cultiva: plantação de nuvem, rabisco de pássaro. E via os
flamingos, setas rapidando-se furtivas pelos céus. Meu pai sentava
em baixo, na curva das raízes, e apontava os pássaros:
— Olha,
lá vai mais outro!
O
flamingo parecia retardar sua passagem. Depois, minha mãe nos
chamava; a mim para baixo e a meu pai para dentro.
— Esse
homem, esse homem — lamentava ela.
— Deixe
o pai, mãe. — É que eu carrego tão sozinha as nossas vidas!
Nem
sempre meu velho se desocupara, assim, em vastas preguiças. Houve um
tempo que ele labutava duro, trabalhara com bichos lá nos matos
longínquos. Contudo, o trabalho não lhe fora leal. Antes e depois
da Independência ele colhera vastas amarguras. Depois, se arrumara
naquele torpor, parado na curva do rio. Para tristeza de minha mãe,
que suspirava:
— Seu
pai não tem comportamento.
O
velho Sulplício desvalorizava: sua mãe é como o grilo — tem
alergia a silêncios. E se enganava ao pensar que ele nada fazia.
Porque ele, consoante anunciava, andava azafamado.
— Ando
aprender a língua dos pássaros.
Ele
gostava era do maduro da manga verde. O Sol, dizia, amadurece de
noite. Que fazer? Há coisas que fazem o homem, outras fazem o
humano. E suspirava: o tempo é o eterno construtor de antigamentes.
Por exemplo, ele. De seu nome Sulplício. Erro de seu destino —
tinha sido polícia em tempo dos colonos. Quando aconteceu a
Independência ele foi prateleirado, entendido como um que traíra os
seus da sua raça.
Foi
quando chegou a Tizangara esse Estêvão Jonas. Trazia uma farda lá
da guerrilha e as pessoas o olhavam como um pequeno deus. Saíra de
sua terra para pegar em armas e combater os colonos. Minha mãe muito
se simpatizou com ele. Na altura, dizem, ele não era como hoje. Era
um homem que se entregava aos outros, capaz de outroísmos. Partira
para além da fronteira sabendo que poderia nunca mais voltar. Ele
levara uma mágoa, trouxera um sonho. E era um sonho de embelezar
futuros, nenhuma pobreza teria mais esteira.
— Esse
país vai ser grande.
Minha
mãe se recordava de ele declamar essa esperança. Quando nasci, já
meu pai deixara a polícia de caça. E já Estêvão Jonas deixara de
sonhar em grandes futuros. Morrera o quê dentro dele? Com Estêvão
se passou o seguinte: a sua vida esqueceu-se da sua palavra. O hoje
comeu o ontem. Com meu pai passou-se o oposto — ele queria viver em
nenhum tempo. O resto eu não podia entender. Meu pai saiu de casa
ainda eu era menos que um menino. Mas ele não se retirou da vila.
Ficou na margem, junto à curva do rio. No mesmo caniçal onde padre
Muhando descobrira o seu lugar sagrado. Sempre que o encontrava, meu
velho parecia distante. Ele se irreconhecia. Não suportava que lhe
perguntassem sobre a sua disposição. Logo ele, amargo, culpando o
mundo:
— E
a terra, a nossa terra, alguém já perguntou se ela se está
sentindo bem?
Sulplício
amava Tizangara com dedicação de filho. Com o alastrar da guerra
muitos fugiram para a capital. Mesmo as autoridades escaparam para
lugar seguro. Estêvão Jonas, por exemplo, se apressara em se
refugiar na grande cidade. Ao contrário, meu pai sempre anunciou: só
sairia do seu refúgio depois de os morcegos lhe abandonarem o
telhado. Ele se colara às paredes como um musgo.
Agora,
sob a grande sombra do tamarindo, eu fechei os olhos e convoquei
saudades. Me apareceu o quê? Um pátio, mas que não era aquele.
Porque nesse terreiro havia uma criança. Nas mãos desse menino
minha lembrança tocava umas tristezas, coisitas tiradas num lixo.
Artes da meninice era fazer dessas coisas um brinquedo. Apetrechos de
mago, ele convertia o cosmos num jogo de desmontar. E era qual esse
brinquedo? Isso, em meu sonho, eu não conseguia distinguir. Apenas
me surgia a enevoada memória da criança escondendo o brinquedo
entre as raízes do tamarindo.
Abri
os olhos, no estremunho de um ruído. Era meu pai que se achegava.
— Está
à procura de quê?
— De
um nada.
Me
fez um gesto para que esperasse. Ele se abaixou entre os ramos e
retirou uma qualquer coisa.
— Será
isto aqui que você procura?
Sim,
era meu velho brinquedo. Me aproximei devagar, para destrinçar o
objeto. E afinal, já em minhas mãos, adivinhei seu formato: era um
flamingo. Entre arames e panos eu construíra o animal voador que
minha mãe fantasiara em sua estória. O brinquedo parecia agora
sobrar em minhas mãos. Lancei o boneco nos ares e as penas brancas e
rosa se espalharam nos ares, demorando uma eternidade a tombar. Meu
velho apanhou uma dessas plumas e acariciou-a entre os dedos.
Aquele
reencontro com minha infância me emprestou inesperada coragem e a
pergunta me saiu, sem preparo:
— Eu
sou mesmo seu filho?
— É
filho de quem então?
— Não
sei, a mãe...
— As
mães, as mães. Que é que ela lhe falou?
— Nada,
pai. Ela nunca me contou nada.
— Pois
eu lhe vou dizer uma coisa...
E
calou-se. A sua voz se engasgou, parecia ter desistido em meio da
garganta. Tentou recomeçar, mas redesistiu. Passou a mão pelo
pescoço como se limpasse a voz pelo lado de fora. No enfim de um
infinito, ele voltou a falar:
— Você
é meu filho. E nunca volte a duvidar.
Batia
com os dedos sobre os lábios, a lacrar o dito. Até me podia contar
como eu fora concebido. Eu não fora gerado logo inicialmente, no
início do casamento. Nem de uma só vez. Quando ele e minha mãe
namoravam, sempre que o faziam, o céu se desabava em chuva. Debaixo
do dilúvio, o casal se prosseguira amando. Faz conta não houvesse
mundo nem chuva. Tinham suas razões: pois há ininterruptos anos que
eles vinham fabricando seu único primeiro filho. Amavam-se sem
paragem. De cada vez que seus corpos se cruzavam, diziam, estavam
fabricando mais uma porção do corpinho do vindouro.
— Esta
noite vamos fazer-lhe os olhos.
Como
fosse esse o produto dessa noite, eles escolheram fazer amor sob o
inteiro luar. Escolheram um descampado bem debaixo da lua. E assim
fizeram, iluaminados, dando seguimento à confecção do menino.
Quantos tempos andaram nisso? Se encolhiam os ombros: um menino
completo pode demorar mais que a vida.
—
Está-me entender, filho? Você foi
concebido em toda minha vida.
A
suspeita me assaltava: Sulplício imaginava aquela estória, naquele
preciso momento. Me fabricava descendente. Se eternizava, fosse em
ilusão. Porém, eu aceitava. Afinal, tudo é crença. De repente,
ele mudou o assunto, cento e oitenta graus:
— E
o estrangeiro?
—
Massimo? Ficou na pensão.
— Não
deixe nunca que ele mande em si.
Eu
que andasse com ele, porque andar com um branco me podia acrescentar
respeitos. Mas ser mandado, isso nunca. Mesmo os brancos do passado
nunca governaram. Nós apenas lhes demos, com nossa fraqueza, a
ilusão que nos governavam.
— Nem
estes de agora, estes nossos irmãos, colonos de dentro, mandam como
pensam.
De
repente, se cansou de fiar conversa e fez questão em se retirar.
Antes, me avisou:
—
Deixaram aí em cima da mesa umas
papeladas para si.
— Quem?
— Esse
vigarista do Chupanga. Disse que não queria deixar na pensão por
causa desse italiano.
Abri
o envelope. Pela primeira vez, senti o medo me invadindo ao ler o
escrito do administrador. Como se as palavras dele me espiassem a
mim.
Mia
Couto, in O último voo do flamingo
Nenhum comentário:
Postar um comentário