Quando
chegou em casa, Manuel encontrou Geminiano na porta, montado na
carroça, esperando. Geminiano cumprimentou expansivo, como não
fazia havia muito tempo. Disse que Manuel devia estar ficando rico,
ou já devia ter ficado, porque não estava mais ligando ao trabalho.
Pulou da carroça e pediu licença para cumprimentá-lo de perto.
— O
que é isso, Gemi? Você parece que viu passarinho verde.
— Eu?
É. De hora em hora a gente melhora.
—
Sempre
acabou o serviço?
— Eu?
Acabei a primeira parte. Agora vou começar a segunda.
— Lá
mesmo?
—
Sempre.
—
Cuidei
que você estivesse cansado.
— Eu?
Que nada! Ainda tenho fôlego pra muito mais. Mas primeiro preciso da
sua ajuda. Está vendo essas tábuas velhas? O senhor vai me mudar
todas elas.
Manuel
não gostou da maneira impositiva. Hábito de lidar com os homens da
tapera? Alto lá!
— Ah,
não posso, Gemi. Estou cheio de serviço. Não tenho tempo para
pegar remendo.
Geminiano
olhou-o espantado. Não contava com a recusa.
— Mas
é preciso. Os homens estão esperando.
— É?
Esperar é bom para a saúde.
— Não
brinque com assunto sério, seu Manuel. A carroça não é mais
minha. É deles. Eles mandaram consertar.
— Folgo
em saber, Gemi, mas não estou mais fazendo consertos. Sinto muito.
Geminiano
pensou, alisando o pescoço do Serrote.
— Seu
Manuel, sempre tive consideração com o senhor, não vou deixar de
ter agora. Faz de conta que o serviço ainda é pra mim, e fica tudo
entre amigos.
— Mas
você acabou de dizer que não é.
— Eu
disse faz de conta. Vejo que o senhor está de má vontade com os
homens. O senhor faz o serviço como se fosse pra mim e eles não
precisam ficar sabendo desse nosso arranjo.
— Não,
Gemi. Não gosto de negócio turvo. Por mim você não precisa
esconder nada. Pode dizer lá a eles que eu não quis fazer o
serviço.
— Que
esperança! Não é assim não, seu Manuel. Não posso dizer isso. De
jeito nenhum não posso.
— Então
você diz lá o que entender. Eu quis dar uma ideia. Se não serve,
você arranja outra. Mas o certo é que eu não vou fazer o serviço.
Geminiano
olhou calmo para ele, explicou com paciência:
— O
senhor não está entendendo, seu Manuel. Eles mandaram a carroça
para o senhor consertar, eu não posso chegar lá e dizer que o
senhor não vai fazer o serviço. Isso não casa com o sistema deles.
— Isso
de sistema cada um tem o seu, Gemi. Se o deles é esse que você está
dizendo, o meu é aquele que eu já disse. Agora, com a sua licença,
vou entrar. Tenho serviço esperando.
Geminiano
não desanimou ainda; continuou explicando:
— Seu
Manuel, pense bem no que está fazendo para não se arrepender mais
tarde. O assunto é sério, não cabe teima nem capricho. Acho melhor
o senhor ir consertando a carroça. Não custa, é só umas poucas
tábuas.
Em
vez de se aborrecer, Manuel achou graça na insistência de
Geminiano. Oh, homem renitente! Era só o que faltava, uma pessoa
trabalhar obrigada. E de que jeito? Com outro segurando a mão dele,
guiando nos cortes e golpes?
— Gemi,
a prosa está boa mas você está muito mandão. Qualquer outro dia
conversamos, mas não assunto de conserto — disse Manuel, e cruzou
a porta para entrar em casa.
Geminiano
saltou na frente dele, segurou-o pelo braço e disse, agora
implorando:
— Seu
Manuel, eu vou falar franco. Nunca tivemos questão até hoje. O que
estou pedindo é um favor, não por mim mas pelo senhor mesmo. Não
quero ver o senhor sofrendo por causa de uma pirraça. — Olhou
furtivamente para os lados e acrescentou em voz baixa: — Aquela
gente… o senhor não sabe quem é. Não queira cair na bigorna
deles.
Manuel
sacudiu o braço para livrar-se do aperto, pôs a mão no ombro de
Gemi e disse como quem consola:
—
Agradeço
o aviso, mas gosto de matar minhas cobras eu mesmo. Está vendo
minhas ferramentas aí na parede? Estão compradas e pagas, e só
trabalham em serviço que eu escolho. Esse é o meu sistema. Não
leve a mal, você que falou em sistema. Remendo de carroça não faço
nem vivo nem morto.
Geminiano
olhou-o com olhos tristes, que tanto podiam ser de pena como de
inveja; sacudiu a cabeça devagar, suspirou e disse:
— Seu
Manuel, quando o senhor estiver no aperto, lembre-se de que eu avisei
como amigo. Fiz o que pude, mais não posso fazer. — Deu uns passos
para sair, virou-se e completou: — Espero que o senhor seja tão
teimoso com eles como foi comigo. Assim não podem me culpar de
relaxo no cumprimento de ordem.
— Pode
deixar que eu me arranjo — disse Manuel, e entrou sem mais
cerimônia.
Geminiano
subiu vagaroso na carroça, sentou-se e ficou pensando. Os olhos
parados na garupa do Serrote nem piscavam. Minutos depois Manuel
chegou à janela para olhar o tempo, Geminiano estava na mesma
posição. Vendo-o ali sem rumo e sem ação, Manuel pensou no
Geminiano antigo tão senhor de si, correto, respeitador dos direitos
alheios. Que força teria conseguido transformar aquele homem
inteiriço nesse inútil feixe de medos? Olhando para cima, para
baixo, para as casas em frente, Manuel sentiu que não estava vendo o
largo familiar mas um trecho de outra cidade, remota, inóspita,
maligna. Manarairema estaria se acabando, se perdendo para sempre? Se
estava, valeria a pena continuar vivendo ali? Não seria melhor
vender a casa, juntar as ferramentas num caixote e sair estrada
afora, trabalhando de fazenda em fazenda nos serviços que
aparecessem?
Enquanto
Manuel pensava, Geminiano mexeu na rédea, propositalmente ou por
distração. O Serrote acordou e saiu arrastando a carroça em passos
lerdos, como quem cumpre uma condenação sem prazo, sem esperança
de livramento. Pensando bem, o Serrote não era o mais infeliz; ele
pelo menos sabia, ou parecia saber; mas as pessoas?
José
J. Veiga,
in A hora dos ruminantes
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