A
velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem sadio no
mato. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos
e dos tempos caminhados.
A
fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em
volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.
O
velho foi chegando, vagaroso como era seu costume. Pastoreava suas
tristezas desde que os filhos mais novos foram na estrada sem
regresso.
“Meu
marido está diminuir”, pensou ela. “É uma sombra”.
Sombra,
sim. Mas só da alma porque o corpo quase que não tinha. O velho
chegou mais perto e arrumou a sua magreza na esteira vizinha.
Levantou o rosto e, sem olhar a mulher, disse:
— Estou
a pensar.
— E
o quê, marido?
— Se
tu morres como que eu, sozinho, doente e sem as forças, como que eu
vou-lhe enterrar?
Passou
os dedos magros pela palha do assento e continuou:
— Somos
pobres, só temos nadas. Nem ninguém não temos. E melhor começar
já a abrir a tua cova, mulher.
A
mulher, comovida, sorriu:
— Como
és bom marido! Tive sorte no homem da minha vida.
O
velho ficou calado, pensativo. Só mais tarde a sua boca teve
ocasião:
— Vou
ver se encontro uma pá.
— Onde
podes levar uma pá?
— Vou
ver na cantina.
— Vais
daqui até na cantina? É uma distância.
—
Hei-de vir da parte da noite.
Todo
o silêncio ficou calado para ela escutar o regresso do marido.
Farrapos de poeira demoravam o último sol, quando ele voltou.
—
Então, marido?
— Foi
muito caríssima — e levantou a pá para melhor a acusar.
—
Amanhã de manhã começo o serviço
de covar.
E
deitaram-se, afastados. Ela, com suavidade, interrompeu-lhe o
adormecer:
— Mas,
marido...
— Diz
lá.
— Eu
nem estou doente.
— Deve
ser que estás. Você és muito velha.
— Pode
ser — concordou ela. E adormeceram.
Ao
outro dia, de manhã, ele olhava-a intensamente.
— Estou
a medir o seu tamanho. Afinal, você é maior que eu pensava.
— Nada,
sou pequena.
Ela
foi lenha e arrancou alguns toros.
— A
lenha está para acabar, marido. Vou no mato levar mais.
— Vai,
mulher. Eu vou ficar covar seu cemitério.
Ela
já se afastava quando um gesto a prendeu à capulana e, assim como
estava, de costas para ele, disse:
— Olha,
velho. Estou pedir uma coisa...
—
Queres o quê?
— Cova
pouco fundo. Quero ficar em cima, perto do chão, tocar a vida quase
um bocadinho.
— Está
certo. Não lhe vou pisar com muita terra.
Durante
duas semanas o velho dedicou-se ao buraco. Quanto mais perto do fim
mais se demorava. Foi de repente, vieram as chuvas. A campa ficou
cheia de água, parecia um charco sem respeito. O velho amaldiçoou
as nuvens e os céus que as trouxeram.
— Não
fala asneiras, vai ser dado o castigo — aconselhou ela.
Choveram
mais dias e as paredes da cova ruíram. O velho atravessou o seu chão
e olhou o estrago. Ali mesmo decidiu continuar. Molhado, sob o rio da
chuva, o velho descia e subia, levantando cada vez mais gemidos e
menos terra.
— Sai
da chuva, marido. Você não aguenta, assim.
— Não
barulha, mulher — ordenou o velho. De quando em quando parava
para olhar o cinzento do céu. Queria saber quem teria mais serviço,
se ele se a chuva.
No
dia seguinte, o velho foi acordado pelos seus próprios ossos que o
puxavam para dentro do corpo dorido.
— Estou
a doer-me, mulher. Já não aguento levantar.
A
mulher virou-se para ele e limpou-lhe o suor do rosto.
— Você
está cheio com a febre. Foi a chuva que apanhaste.
— Não
mulher. Foi que dormi perto da fogueira.
— Qual
fogueira?
Ele
respondeu um gemido. A velha assustou-se: qual o fogo que o homem
vira? Se nenhum não haviam acendido?
Levantou-se
para lhe chegar a tigela com a papa de milho. Quando se virou já ele
estava de pé, procurando a pá. Pegou nela e arrastou-se para fora
de casa. De dois em dois passos parava para se apoiar.
—
Marido, não vai assim. Come primeiro.
Ele
acenou um gesto bêbado. A velha insistiu:
— Você
está esquerdear, direitar. Descansa lá um bocado.
Ele
estava já dentro do buraco e preparava-se para retomar a obra. A
febre castigava-lhe a teimosia, as tonturas danando com os lados do
mundo. De repente, gritou-se num desespero:
—
Mulher, ajuda-me.
Caiu
como um ramo cortado, uma nuvem rasgada. A velha acorreu para o
socorrer.
— Estás
muito doente.
Puxando-o
pelos braços ela trouxe-o para a esteira. Ele ficou deitado a
respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que
subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte um simples
deslizar, um recolher de asas. Não um rasgão violento como nos
lugares onde a vida brilha.
—
Mulher — disse ele com voz
desaparecida. — Não lhe posso deixar assim.
— Estás
a pensar o quê?
— Não
posso deixar aquela campa sem proveito. Tenho que matar-te.
— É
verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco.
E uma pena ficar assim.
— Sim,
hei-de matar você; hoje no, falta-me o corpo.
Ela
ajudou-o a erguer-se e serviu-lhe uma chávena de chá.
— Bebe,
homem. Bebe para ficar bom, amanhã precisas da força.
O
velho adormeceu, a mulher sentou-se porta. Na sombra do seu descanso
viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu-se dos
contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu
fim marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela
inclinou-se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os
filhos, os mortos e os vivos, a machamba encheu-se de produtos, os
olhos a escorregarem no verde. O velho estava no centro, gravatado,
contando as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os
filhos e os netos. Estava ali a vida a continuar-se, grávida de
promessas. Naquela roda feliz, todos acreditavam na verdade dos
velhos, todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne
para a morte. Os ruídos da manhã foram-na chamando para fora de si,
ela negando abandonar aquele sonho. Pediu à noite que ficasse para
demorar o sonho, pediu com tanta devoção como pedira vida que não
lhe roubasse os filhos.
Procurou
na penumbra o braço do marido para acrescentar fora naquela tremura
que sentia. Quando a sua mão encontrou o corpo do companheiro viu
que ele estava frio, tão frio que parecia que, desta vez, ele
adormecera longe dessa fogueira que ninguém nunca acendera.
Mia
Couto, in Vozes anoitecidas
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